Construção de uma quebradeira, por Valeria Barbosa

Muito prazer. Sou apenas uma pessoa. Simples para ser entendida e por isto complexa para a compreensão.

Sou Quebradeira por condição social, e por esta condição resiliente na construção pessoa.

As rachaduras formadas em meu ser foram costuradas, bordadas, coladas pela cultura do contexto e pela fé em dias melhores.

Já vi vários amigos tombar no chão, a morte prematura que circulava a minha vida fez-me cuidadosa na aproximação e esperta pra sobreviver ao tempo curto permitido para um jovem na favela.

Não tinha sonho, havia um futuro desejo de um não sei. Tinha força, coragem, fome de saber, ter bens poderia ou não ser consequência desta resistência.

Por ser composta de cacos, vidros coloridos, uns  brilhantes e alguns transparentes; por vezes baixei a guarda e fui sacaneada pela insanidade de uma amizade desleal. Poderia ter me virado e cortado este mal, mas não o enxergava nas palavras, conhecia-o de outra forma, quando era fatal.

No meio do caos eu vivia perdas e ganhos, mais ganhos nesta troca de saber vivendo em  pleno aprender.

Com as bordadeiras do beco onde vivi eu aprendi que o glamour ajuda dar brilho as lágrimas e eu sempre chorei  pelo valor de perdas de vida.

Na quentura do fogo nas labaredas de São João eu vi balão subindo antes de se tornar um crime soltá-los, e embaixo nos nossos barracos sequer pairava o medo de seu retorno ao solo.

Dividíamos comida, sentávamos na porta sem calçadas, carregávamos água pra quem não tinha forças pra tal, levávamos puxão de orelha quando as traquinagens ultrapassavam a brincadeira, fazíamos roda no Largo da Amizade, assávamos batata doce… Pedaços de lembranças que  juntaram os sentimentos desta pessoa.

Cantava, escrevia, fazia poemas em casa de analfabetos e o retorno do elogio jamais chegou, como elogiar o que não se conhece?

Hoje me lembrei deste tempo, desta criança que me tornou uma mulher forte e frágil, crédula e descrédula, quebrada na alma por ter vida. A vida não é inteira é assim quebrada. O seu mosaico de momentos vai se ajeitando e ampliando sentidos com todas as significâncias que destinamos  a cada pedaço de lembranças.

Eu uso linhas para chulear cada lembrança, coloridas, algumas brilhantes, uso além de tecidos, não me prendo ao material, ouso, recrio, crio sentido para entender este movimento divino que é o viver.

Quebradeira  sei que sou.  Compositora, poeta, escritora, artista plástica, costureira, palhaça, mulher do bem tratar, pessoa com múltiplas facetas que formam a minha colcha de experiência e que me deixa inteira para aquecer a memória de tantas vidas que passaram por mim e ficaram me deixando mais plena.

 

Valeria Barbosa é quebradeira da turma de Manguinhos