Memórias de uma palhaça aprendiz

Uma das primeiras experiências na palhaçaria eu me lembro de ter uns 15 anos, mais ou menos. Foi incrivelmente maravilhosa, porque eu não sabia o que estava me esperando. Na verdade, eu mesma não esperava nada daquele dia. O combinado era eu ir acompanhar um trio de palhaços homens para fazer uma intervenção social com crianças de um CIEP bem distante  da parte urbana do Rio de Janeiro, mas como eu não tinha experiência, fiquei de stand bye.

A apresentação foi totalmente gratuita e voluntária, a única moeda de troca seria um lanche do próprio CIEP e muitos abraços de agradecimentos.

O lugar para mim ainda desconhecido era longe pra dedéu e para chegar na escola, tínhamos que pegar 2 ônibus, baldeação, um trem, carona na carroça ou andar umas léguas sem fim para chegar. Em algumas horas, o “cenário” já não era mais urbano e o cheiro de mato e natureza viva chegava aos meus pulmões, e um vôo rasante de pássaros coloridos a me arrancar o primeiro sorriso.

Quando chegamos na escola, eu confesso que estava de mau humor. Passamos perrengue para esperar as conduções e muitas horas para chegar no local, eu estava com fome, com sede, cansada, realmente esgotada pelo tempo, pela distância, pelo sol e pelo o que estava por vir.

Meus amigos que me levaram somente de figuração, me pediram para entrar primeiro de palhaça improvisada porque nem figurino eu tinha. Chegar lá no maior improviso de todos os tempos: apresentaram os três… Já dá pra perceber que eu fiquei  verde, envergonhada, despreparada, confusa, tímida e calada… Como assim, eu vim para acompanhar e já vou atuar de primeira, sem ao menos ensaiar? Como assim? Porque eu? Porque agora? Porque assim? Estou ficando nervosa, com pânico e se as crianças zombarem de mim? O que eu faço? E se elas não gostarem? E se eu engasgar na hora? E se eu… Não tinha mais argumento, porque enquanto eu  falava que não estava preparada, eles me pintaram a cara, colocaram o nariz vermelho, prenderam meus cabelos no alto que nem uma maluca  e… Me empurraram para  o lugar e foi …

Agora brinca um pouco com eles, enche linguiça, enquanto nos arrumamos e depois apresenta agente… Vai lá !!! Vai !!! Você consegue, você sabe, você já é uma… Vai lá!!! Vai! (era uma ordem) não soava como um incentivo, um apoio moral, era realmente uma ordem… Se você quer ser… Faça acontecer, não tinha essa parada com aulas  de palhaço para aprender ser uma palhaça…

Aprendi que muito mais coisas, do que eu imagino, são feitas assim, acontecem assim, você não nasce sabendo, você pratica, você não aprende em escola, você pratica, você não aprende em cursinho intensivo, você pratica na vida, no fazer… É no fazer que conseguimos aperfeiçoar o nosso ser e pronto…ponto final.

Quando eu entrei em cena, no pátio, sem cenário, sem figurino, sem graça, sem alegria, sem um pingo de experiência… Percebi o quanto eu poderia ser… E o quanto o mundo tem carência pela arte, pela cultura e pelo amor a um personagem… O palhaço é um ser completo, um personagem único, sem igual no mundo, eu sempre admirei os palhaços brasileiros: Carequinha, Arrelia, Pimentinha, Caçarola, Borogodó, Piolhim, Benjamim, Dudu, Pam Pam, Fuxiquinho, Cheirosinho, Fuxico e Fofoca. Gostava, adorava ver, ouvir, rir e me emocionar nos palcos, nos picadeiros, mas me apresentar como uma palhaça era tão distante e tão presente dentro, junto, lado, centro que de repente, eu estava ali, com medo de errar e fazendo todo mundo rir… Primeiro pensei no palhaço mudo de Carlitos e com caras e bocas eu fui pisando  de vagar “com medo de quebrar o chão” fazendo  sinal de silêncio: xiiiiiiiiii !!!!!!!!!

Para não acordar alguém… Eu acho que era o medo de acordar, o meu medo de estar ali e sem dar nenhuma palavra, fiquei ali uns 5 a 10 minutos fazendo mímica com um jeito todo desengonçado de entrar em cena, olhar uma  multidão de crianças, sem apetrecho algum, além da minha cara pintada, sem microfone, sem palco, sem cenário… Exatamente nada que pudesse me ajudar, eu tirei uma força do fundo… Lá do fundo e fiz uma graça que nem eu mesmo sabia que tinha… Fiz aquelas crianças rirem de nada, do nada… Com nada…

E foi ai que eu consegui perceber o quanto eu poderia atingir o mundo com meu sorriso, a minha graça, o meu improviso, com carisma, vontade e determinação.

As crianças riram e se divertiram muito com aquela primeira palhaça que estava ali somente para apresentar  o show de verdade… Os palhaço se apresentaram e as risadas vieram ainda mais abaixo, foi um grande show, o melhor de todos, tudo no improviso, era a primeira vez que todos nós palhaços estávamos  juntos, trabalhando pela primeira vez, juntos. Era um encontro em fase de adaptação, era o teste dos testes, ninguém ali sabiam o que fazer, planejado ou ensaiado, eu preciso repetir, era tudo no improviso mesmooooo. Foi a minha primeira vez e dali em diante, eu nunca mais fui a mesma pessoa. Eu tenho convicção que naquele dia, nasceu um outro ser, dentro de mim, rasguei a “ virgindade como  atriz de Rua e no mesmo instante pari uma palhaça, alguém que de dentro de mim, do meu corpo, consegue ser um outro ser… Ah tá… Um personagem, como nas novelas. Conheci esses palhaços na Rua da Lapa e  de um papo, surgiu o convite para acompanha-los em um momento de trabalho.  No dia seguinte, numa segunda feira, semana do Palhaço, marcamos de ir e fomos. No caminho explicamos tudo, como vai ser e tal…

É isso mesmo, acabo de fazer amigos de nariz vermelhos e de fazer amizades e de criar um personagem, foi  uma emoção, que ao escrever e relatar os fatos, relembro  mais forte e na memória vem ainda mais. Me emociono e me arrepio só de lembrar, depois do show de uma hora, tiramos fotos, abraçamos todos, eram muitas crianças e a maioria queria chegar perto, abraçar, chorar e rir, apertar, pisar no sapato para ver se era de verdade, algumas me beliscaram devagar para sentir se éramos de verdade mesmo, isso mexeu comigo profundamente. Porque naquele momento havia verdade, havia carinho, tinha amor e verdade, teve tumulto para chegar perto da gente, todos queriam abraçar os palhaços como se fôssemos artistas famosos da TV e do Cinema, me senti um ser importante naquele momento como nunca havia sentido antes. Um ser especial mesmo, de valor, de importância, com um propósito na minha vida, era como se eu tivesse batido de frente com a minha missão nessa Terra fria.

Quando fomos embora, percebi que tinha perdido meu mísero  dinheiro da passagem de volta pra casa e como estávamos todos sem nenhum, literalmente falando, pensamos em fazer uma intervenção dentro do próprio ônibus de volta pra casa… O que é um peido pra quem tá todo cagado???? Entramos um pagando e os outros pela porta de trás e cantando, imitando, fazendo um mini show, recolhemos a sacolinha e garantimos a volta pra casa e um lanche mais tarde e foi assim que aprendiz de palhaço descobri o show da moeda!!!!

Eu estava demasiadamente extasiada com aquele momento, foi uma felicidade  mútua, recíproca, estar ali me fez crescer  em espírito, me senti um prato de comida na fome da África, um copo de água no deserto do Saara e senti a necessidade de amor naqueles olhinhos carentes. Naquele dia, fui pra casa chorando literalmente de alegria, eu soluçava e ninguém entendia e nem eu explicava, porque nem eu sabia… Mas ali mesmo nascia uma outra, diferente de mim mesma, de dentro de mim, minha primeira cria. Com tanta alegria, chorava e ria e por ali ganhamos em matéria um lanche de frutas, parecia insignificante, mas ali também recebi o alimento da alma para me transformar no que sou ainda hoje… Uma palhaça de corpo, alma, mente e coração .

Por ela mesma: Eu Anick palhaça Animanick, Rio de Janeiro, 01 de Abril de 2012 .
Foto: Jason Antony