Numa Ciro – A Peleja da Voz com a Língua

O AMOR

Quando as portas do teatro se abrem, os muitos expectadores, entre risos e abraços, se movimentam à procura do melhor lugar.

No centro do palco, Numa Ciro aguarda seu público e, num jogo de espelho, inverte a lógica da plateia, que passa a ser o foco de seus olhos atentos, que darão visibilidade em versos, canções e gestos à trama de nossos enigmas humanos, demasiadamente humanos.

O que pode a voz diante do amor?

A artista atrevida nos convida para uma travessia, em que a língua é ferramenta afiada de produção de realidades.

Faz-se o dilema: se existimos nas palavras que sempre tão poucas, nos deixam em alarde pelo tanto que há a ser dito, no entanto, ai de nós, sem elas vagamos num insuportável desamparo das coisas, sem nome, sem história, sem existência.

E Numa Ciro, diante do impasse, dá um passe, não se faz de rogada, transgride e inventa caminhos. Com o coração na voz, rola no chão uma, duas, três vezes, abandona a alvura das vestes, bordeja os limites de si, se aconchega junto ao público, tramando em nós a cumplicidade que, matreiramente, pisca, faz psiu e afirma um enredo em que navegar é preciso, mas viver é precioso. Não tão sério assim, mas com a seriedade com que as crianças brincam, como diz Jorge Luis Borges.

E lá vai, lá vai comovente num bailado de múltiplos encontros e balaios de surpresas.

Desafia e questiona o autor (Shakespeare, Romeu e Julieta), que insiste na morte como um destino, e quando ele menos espera, a artista escapole e, com humor, inventa um enredo arretado e promissor, abaixo da linha do Equador, para a vida passar.

Desafia a canção em inglês (She, interpretado por Marianne Faithfull, parceria com Angelo Badalamenti), e canta simultaneamente em português, num jogo de intensidades que ultrapassam os enquadres do idioma e seus códigos. É a língua que se reinventa quando sai do coração.

Desafia o estranho (“Senhor extraterrestre”, Carlos Paião), um E.T. que diante daquela mulher tão simplesmente dia a dia, com a roupa no varal, seca por um bacalhau, atenta ao olhar enxerido da vizinha, é incapturável por seus censores, que atrapalhados só sabem dizer Pi diante do surpreendente dos infraextraordinários. Da distância de seus mundos, as diferenças os aproximam. Deixa saudade na partida.

Desafia a mesmice do marido e do amante que, ocupados com seus nomes, não ouvem a mulher que troca de pele (“Nova identidade”, Tânia Christal), e avisa estou numa nova fase, sob nova direção! Habita os movimentos!

Desafia o amor, que ele desça das alturas e feio, sujo, vício (“O amor é feio”, Tribalistas) encarne na vida dos homens (“Monte Castelo”, Renato Russo) e seja lindo e livre na língua dos homens.

E de desafio em desafio, Numa Ciro se enreda com objetos-lembranças, o pequeno acordeom, as bonecas de pano, livros, filós. Lembranças em borbotões, que bebem no olho da fonte para ficar mais perto da vida, e mais distante da morte.

E nos espanta! Meus Deus, como cabem nessa mulher tantas palavras? Palavras grávidas, parideiras de sentidos. Só mesmo uma poeta, filha do pai universo e da mãe terra carrega num fôlego só, numa memória ancestral, combinações abissais de múltiplos usos.

Será, quem sabe, talvez a Peleja da Voz com a Língua, uma colheita das palavras essenciais. Para que a palavra não emudeça e ganhe voz na fala de todos nós. E, se não resolve a rima, nos devolve ao mundo, transfigurados, quiçá mais belos e generosos.

 

Por Angela Carneiro coordenadora pedagógica da Universidade das Quebradas

Foto Claudia Ferreira

Ficha técnica
Roteiro e Encenação: Numa Ciro
Apoio Cênico: Marcelo Melo – do Nós do Morro e Universidade das Quebradas
Luz : Eduardo Salino
Cenário e Figurino: Hildebrando de Castro
Assessoria de Imprensa: Passarim Comunicação
Programação Visual: Elaine Lopes
Assistente de produção: Ana Beatriz Oliveira
Arquitetura de produção: A Gente Se fala Produções
Coordenação Geral: Miriam Juvino