O Rio, a Poesia e a Liberdade – por Poeta Xandu

   O Rio, a Poesia e a Liberdade

   – by: Poeta Xandu


   […a poesia marginal retumba! e seus estrondos são mais fortes que tudo! mais fortes que o bloco que passa! mais fortes que o bumbo de carnaval!…]

   Trecho de um poema arrogante, prepotente, poema duro como o concreto da urbe, uma miragem na cidade-caos! Na verdade… Sou um poeta anônimo, poeta fumaça – Poeta Xandu que nunca existiu. Ao adentrar pelos portões da Universidade das Quebradas, no lugar da poesia, trouxe as assinaturas das gangs de rua, minha gente do Breaking de chão, das esquinas da cidade. Sou poesia e movimento no mesmo bloco de asfalto.

   A cidade… Digo, não digo, então falo. Escrevo muito, mas muito pouco sobre a poesia. Escrevo a cidade do Rio, de forma geral, agora desafiado pela nossa querida quebradeira Beá abro excessão. Tal missão foi possível por saber da importância que é o imediato UQ, tempo da família UQ – artistas marginais, periféricos, divergentes. Falemos sobre isso: nossa arte e liberdade, nossa força, nosso patus.

   “Liberdade é passar a mão na bunda do guarda”, dizia uma das camisetas de maior sucesso dos grupos Casseta Popular e Planeta Diário, logo quando se uniram. Trata-se disso: queremos liberdade imensa. Busco na memória as origens, como o grupo TAPA, dos poetas da FACHA, com poesia erótica, um escândalo. Poderia falar dos longos anos de zona sul, quando conheci poetas do Baixo Gávea, os da praia, os poetas da ECO/UFRJ, da PUC-Rio, o surgimento do CEP 20 Mil, poderia falar sobre isso. Os… poderia.

   Mas o tempo é madrasta… Seria muita liberdade falar dessa poesia de outrora: nem sobre Michel Melamed, com seu toque refinado de humor; nem sobre a primeira vez que vi Bianca Ramoneda se apresentar ao público; nem sobre Cabelo, Montanha, Pedro Luís, Fausto, gente do grupo Boato. Os poetas da Lapa, da Trupe Imaginária… Poemas contaminaram-me. Ainda assim, seria falar demais…

   A poesia como liberdade é um ato político, psicografou o professor Nelson Maca: é coisa de artistas divergentes. Loucos? Também. O exemplo vem do tratamento aberto do Pinel, a brilhante figura de Joe Romano. Nesse 2012, o anti-manicomial é relevante, tanto pela questão da brutalidade contra o Crack, como pela ocupação Elogio à Loucura, na Praça São Salvador – Laranjeiras.

   Membro do coletivo Ratos Di Versos, Dudu Pererê proclama seu Elogio à Loucura: “Entre loucos, sinto-me solto!” Mas o Joe Romano então… Esse cara veio da poesia punk, com atos contundentes no Largo da Carioca dos anos 70, até se consolidar junto às maltas da poesia universitária. Proibido de beber, jamais conseguiu o feito, pois sempre foi muito próximo de toda a vida underground da cidade. Falemos dele.

   Joe Romano não é apenas um trecho de sucesso da TV Pinel, não apenas uma voz no CD do Grupo Boato, ou CD do Gustavo Acioly… Era um Poeta da “asa negra”, libertário, fã de Joe Ramones, com alguns livros publicados. Na maioria das vezes, suas intervenções eram rejeitadas nos palcos, mas foi em sua atuação que vi uma das melhores performances poéticas de toda minha vida.

   Em seus delírios totais, era comum vê-lo subir aos palcos, no meio da peça poética alheia, para tocar sua terrível flauta doce, ou seu violão todo quebrado. Outras vezes, simples, despia-se das roupas. Outras, ainda, dizia poemas essenciais, para os quais todos se calavam. Esse era o drama: tê-lo ou não tê-lo. Tenho-o. Tenhamo-lo todos nesse registro!

   No plano da política dos 90, estávamos surpresos com o surgimento de algo, que não era esquerda, nem era direita. Era a legenda da Social-Democracia, o tal “centrão”, uma herança dos “verdes” alemães. Nesse contexto, em um dos primeiros capítulos do CEP 20 Mil, Joe Romano sobe ao palco pra poetar:

   “Porque, agora, não existe mais direita!

   Agora, não existe mais esquerda!!

   Agora, direita virou esquerda!!!

   A esquerda virou direita, passou pro meio de campo, ajeita pra ponta, a direita tonta, cruza, passa, atrasa pra esquerda, que queda, que gira, que pira, que dribla o beque para abrir a guarda, e inverteu a jogada, um outro já mata no peito, dá seu jeito, deixa a marcação de calça arriada, pra levantar na área, com classe, cabeceou, errou, bateu na trave, bate-num-bate, bate-rebate, no bololô – baticum! veio um doido e chutou, é Gol:

   – GooooOooooO0ººoLL!! Éééééééééé Gol do Brasil!”

   *Joe estava vestido com a camisa da seleção.

   – “Gooooooool!! Gol do Flamengo!!”

   **Joe retira a camisa da seleção para exibir esta outra.

   – “Gooooooool!! Gol do Vasco!!! Gol do Fluminense!!! Gol do Botafogo!! Gol do América!! Vários times.”

   ***Joe troca de camisas umas dez vezes, uma após a outra, time após time, até ninguém mais saber para que serve uma torcida. Sacaram? Um gênio!

   A nitidez dessa poesia foi um acontecimento, um breve instante capaz de iluminar toda a cidade. A cidadania se completou com sua poesia. Assim, como medida para este pequeno caos, a plateia respondeu de pronto, o público veio a baixo! Nunca se viu tamanha gritaria, nunca se aplaudiu tanto uma performance poética. Era o Joe!

   Grandes nomes da poesia estavam ali, aprenderam com ele, Joe Romano, em ato público de divergência, liberdade e boa saúde mental. Nesse dia… O julgamento da pessoa foi suspenso. Ficou suspensa qualquer plateia mais requintada, sempre aguardando algum novo artista de letras elaboradas, de carisma poético, de apego ao belo, nada disso. O mundo era Joe Romano, podrão e genial e só.

   Joe Romano era presença terrível, muitas vezes era o avesso do profissionalismo que se buscava. Sua liberdade para caos e poesia, claro, era garantida por alguns rebeldes essenciais de nosso Rio. Um deles era o irreverente poeta Maurição, criador das casas: Kitchnet em Copacabana, da Cinema Scope da Gávea, locais modernos dos anos 80 pros 90. Na virada pro ano 2 mil, Joe Romano deixou o plano material para residir no real panteão da poesia – sempre libertária.

   Dedico todo meu respeito aos artistas populares que buscam, se esforçam para estar no “meio” da poesia, da literatura, e tratam com carinho as palavras que usam. Se alguns já são reconhecidos e vendem livros, formam público… Espero que sim! Existam e brilhem!

   O Poeta Xandu não existe: o que existe é o jacaré que mora num rio, no rio afetivo do poeta Marcelo do Patrocínio. O que existe são as esquinas da Penha pela escrita do Delano, a criatividade do Sanduba Hip-Hop, o swing black na voz do Feijah’N, o remelexo afro da Eliete, risos de Anick, letras desse Tom e tantos outros tons que fazem a UQ acontecer de verdade!


   Poeta Xandu escreve UQ diz. Falo de baixa urbanidade, de folias, bate-bolas, divindades afro, a mãe preta com bebê ao colo, que pede. Bom, minha realidade poética não é tocar, é trocar, com o popular… O povo não me aplaude. Agradeço ao vazio e vou. Aquela conversa a toa na minha frente possui outra antena! Não é o público de teatro. É o outro. O depois-poema forma-se na fila, para uma troca mais próxima, como se vissem em mim um pai de santo, nem tanto, mas algo assim.

   Por isso me indentifico com poetas marginais, que são contestadores, como o Genival – digo, o rapper GOG de Brasília. O povo se sensibiliza: chamam-no Poeta do Hip-Hop. Vejo o fino do samba, funk, RAP, são belezas marginais. Fazer o interdito poético, expor o instinto, a veia nervosa, é preciso coragem e beleza. Sempre isso leva a um quê de verdade inequívoca. Não a verdade platônica, mas a palavra contundente, como a oralidade afro de Nelson Maca.

   Professor de Literatura na UFBA, Maca refere-se a cada poema negro, periférico, como um poema de guerra. Seu poema é a “deseducação de Nelson Maca”, expressão para “estragos” através da arte. Não é como estética da fome, da cor, nem literatura marginal, nem periférica. Prefere-se um Zapata reloaded, um Fela Kuti renascido por uma dialética africana, poesia plena de desapego, de lúdico, ginga – uma Literatura da Divergência! Daí surgiu seu livro Gramática da Ira – Maca me contou isso.

      E fica o recado:


                               tem-um-tambor

      …dentro-do-peito-               -dentro-do-peito-tem…

etc. etc.                                                                            etc. etc.

   Raramente alguém saberá em qual boteco de Acari se juntam poetas negros, como Éle Semog, Poeta Delei… Mesmo no main-stream, raramente alguém saberá das poesias homo-eróticas do professor João do Corujão – porque são difícieis ao paladar, porque são tribais também. Raramente alguém entrará numa roda de porno-poemas do casal Trindade. Mesmo a poesia da filósofa Viviane Mosé, cuja profundidade é objeto para especialistas…

   As diversas rodas poéticas variam, em seus personagens, em seus frequentadores carinhosos, em suas concordâncias e divergências. São saraus diversos, alguns atraem, outros repelem. Pode rodar por Sampa, nem só Cooperifa, nem só um ou outro: são muitos. Pode rodar o Rio e verá: cada canto com certeza um canto. Creio que a visibilidade é menor que a importância de estar junto, na arte dos encontros poéticos…

   Como as palavras essenciais desaparecem na poeira do tempo?

   No tempo da Belle Époque, um clima de Literatura e Boemia tomou o Rio de Janeiro, resultando em grandes nomes da Academia Brasileira de Letras, posteriormente. Existiu um poeta especial, anônimo por aqui, cuja contundência era capaz de arrastar pequenas multidões pelas ruas, cafés e botecos do Rio… Descrito pelos opositores como um sujeito “grandão e gordão”, por chacota, ganhou alcunha de Rei Momo. Esse cargo, premiado em concurso municipal, prendeu-se ao lado bizarro; perdeu-se da poesia essencial…

   Como um cara desse some da história?*

   Como a contundência de Castro Alves não foi capaz de por fim aos lapsos de cidadania vistos como meras chacinas underground? Solano Trindade idem. É na boca maldita que reside a guerra, de Gregório de Matos e Guerra, que a história pára, mas que em nossos corações adolescentes não se calará!

   Cada um poeta na sua palavra, divergente a seu jeito, em geral, somos todos proibidões a vera!

   Poeta Xandu            

   *Desculpo-me por citá-lo tão Momo, mas ouvi sobre esse poeta em alguma palestra universitária, perdida no tempo, e sem nunca mais ouvir falar sobre isto novamente. Pesquisem!

   PS- Uma Dica! Para quem se interessa sobre o Literatura e Boemia no período Belle Epóque do Rio, descobri um estudo interessante sobre o assunto e seus personagens – talvez o tal “Rei Momo original” nos apareça. O artigo consta na Revista Querubim, foi escrito por Nascimento e Coutinho, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ, pode ser lido a partir deste link:

http://www.uff.br/feuffrevistaquerubim/images/arquivos/zquerubim_15_2011_vol_2.pdf