Pós-aula 3/5/2016: “O Cortiço ” – romance com força descritiva dos universos coletivos – Prof. Eucanaã Ferraz

Texto escrito por Monica Artiles

Para dar início à aula sobre O Cortiço, romance de Aluísio de Azevedo que é o tema principal desta edição da UQ, na primeira terça de maio, dia 3, o poeta e professor da UFRJ Eucanaã Ferraz  –  que sempre se interessou por artes visuais – nos brindou com uma série de projeções do Rio de Janeiro do final do século XIX.  Assim, foi possível ter uma noção de como era a cidade por meio de diversas fotografias antigas e ilustrações da artista plástica Fayga Ostrower (1920-2001).

Em seguida, passamos para o contexto histórico, no qual a narrativa se passa em um típico cortiço do fim do século XIX. O professor Eucanaã Ferraz explicou que o Rio de Janeiro daquela época não tinha infraestrutura sanitária e passava por um crescimento urbano desordenado, com a chegada de imigrantes europeus de diversas origens e escravos alforriados vindos da Bahia e descendentes. Por conta desse cenário, os governos federal e municipal deflagraram, cada qual, seu processo de reforma da cidade. A partir daí, o prefeito Pereira Passos dá início, no começo do século XX, a um processo de modernização excludente do Rio de Janeiro que ficou conhecido como “bota-abaixo”. As mudanças que levaram à construção de praças, ruas e de estruturas de saneamento básico foram promovidas com a remoção das famílias mais pobres da região central do Rio e com a destruição de grande parte dos cortiços, levando muitas delas a migrar para a região da Cidade Nova, sobretudo para o Estácio, e a parte mais alta dos morros. Foi nessa época que muitas favelas surgiram. E ali, a meio caminho entre o porto e o Morro da Providência, nasceu, na mesma fase, o samba. Por sua vez, Rodrigues Alves, presidente do Brasil entre 1902 e 1906, implementou uma extensa política de saúde pública que desencadeou a Revolta da Vacina, recordou Eucanaã.

Professor Eucanaã em aula na UQ (Crédito: Pedro Diego Rocha)
Professor Eucanaã em aula na UQ (Crédito: Pedro Diego Rocha)

Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho de Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outra notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor: música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo.  Esta passagem é um exemplo de lusofobia, conforme expôs Eucanaã Ferraz, e do confronto entre brasileiros e portugueses.

Nos vinte e três capítulos que constituem a obra, são comparados dois conjuntos antagônicos: a família burguesa bem sucedida, que habita o sobrado, e o proletariado, que habita o cortiço. O professor também nos relatou que o romance, de localização estritamente carioca, se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos caracterizados por condicionantes de origem social, sexo e etnia. No cortiço, moram os mais variados tipos: brancos, pretos, mulatos, lavadeiras, malandros, capoeiras, benzedeiras, portugueses, entre outros: a Machona, a lavadeira, gritalhona, “cujos filhos não se pareciam uns com os outros”; Alexandre, mulato pernóstico; Pombinha, moça franzina que se desencaminha por influência das más companhias, Rita Baiana, mulata faceira que andava amigada na ocasião com Firmo, malandro valentão; Jerônimo e sua mulher. Um ambiente feito de inúmeros quartos e inquilinos, tão numerosos, quanto diferentes e ruidosos.

O cortiço é descrito, no romance, como uma “comunidade larvar, um «formigueiro», uma «serpente de pedra e cal», coleando num chão genésico, carnal, de que se desprendem odores fortes, crus e animalescos.” O professor esclareceu que a obra, publicada em 1890, tem um importante valor documental e denuncia a exploração e as péssimas condições de vida dos moradores dos cortiços. Ainda de acordo com Eucanaã Ferraz, atualmente, existem em situação análoga aos cortiços cerca de 296 mil moradias, segundo dados do censo de 2010 – IBGE.

Ilustração de Fayga Ostrower para O Cortiço (1944)
Ilustração de Fayga Ostrower para O Cortiço (1944)