Pré-Aula 3: A Psicanálise e as Artes – Numa Ciro

Olá!

Nossa terceira aula no MAR traz nossa coordenadora Numa Ciro para falar sobre relação entre Psicanálise e as artes.

Não é necessário ler todo o material abaixo, mas não deixe de ler um trecho. E leve perguntas para a aula no dia 26/08/14.

Abraços,

Felipe Boaventura

Comunicação Universidade das Quebradas

A Psicanálise e as Artes

Quebradura Literária

 

A doença é o tempo que a gente perde a não aprender o que a gente deseja.

     Picasso

Eu não procuro, acho.

Picasso

 

A verdade é inatingível;

a humanidade não a merece

e, aliás

não tinha razão o nosso Príncipe Hamlet

quando perguntou

se alguém poderia escapar

a umas chicotadas

se conseguisse o que desejava?

Sigmund Freud

Carta a Arnold Zweig 31. 5. 1936

Jocasta: Σὺ δ’ εἰς τὰ μητρὸς μὴ φοβοῦ νυμφεύματα˙

πολλοὶ γὰρ ἤδη κἀν ὀνείρασιν βροτῶν

μητρὶ ξυνηυνάσθησαν.

Sophocle

Jocasta: Não temas tu os esponsais com uma mãe;

mesmo porque a maioria dos mortais já sonhou

em partilhar o leito com sua mãe.

(Tradução de Henrique Cairus)

 

 

A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavra.

                     Jacques Lacan (1968)

 

(…) eu dei a ele um pouquinho do bolinho de cheiro da minha boca e era ano bissexto como agora sim dezesseis anos atrás meu Deus depois desse beijo longo eu quase perdi minha respiração sim ele disse que eu era uma flor da montanha sim assim a gente é uma flor todo o corpo de uma mulher sim essa foi uma coisa verdadeira que ele disse na vida dele e o sol brilha para você hoje isso foi porque eu gostei dele porque eu via que ele entendia ou sentia o que era uma mulher eu sabia que eu podia dar um jeito nele e eu dei a ele todo o prazer que eu podia levando ele até que ele me pediu pra dizer sim e eu não queria responder só olhando para o mar e o céu eu estava pensando em tantas coisas (…) eu mocinha onde eu era uma Flor da montanha sim quando eu punha a rosa em minha cabeleira como as garotas andaluzas costumavam ou devo usar uma vermelha sim e como ele me beijou contra a muralha mourisca e eu pensei tão bem a ele como a outro e então eu pedi a ele com os meus olhos para pedir de novo sim e então ele me pediu quereria eu sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em torno dele sim e eu puxei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meus peitos todos perfume sim o coração batia como louco sim eu disse sim eu quero Sims. 

Trecho final de ULISSES de James Joyce

Traduzido por Antônio Houaiss

Trieste-Zurique-Paris, 1914-1921

aula psico arte numa

(Sem referências para a imagem, sendo amplamente utilizada na web)

Não iniciei um só parágrafo sabendo onde ele iria terminar. É claro que o livro não foi escrito para o leitor; depois das duas primeiras páginas, desisti de qualquer tentativa de cuidar do estilo. Por outro lado, é claro que acredito nas conclusões. Ainda não tenho a mínima ideia da forma que finalmente assumirá o conteúdo.

Freud em carta para Fliess, 7 de julho de 1898

 

 

No dia 13 de outubro de 1935, Sigmund Freud recebeu a visita do escritor Thornton Wilder. Conversaram durante uma hora e meia sobre vários assuntos e, num certo momento, Freud lhe confessou o desejo de que a psicanálise fosse assimilada de tal forma que aparecesse na ficção como “romance puro”. Lamentava que esse processo talvez durasse séculos, pois alguns escritores, quando utilizam a psicanálise na ficção, tratam-na de forma esquemática, ressaltando sua natureza clínica. Wilder respondeu a Freud que o autor de uma obra cuja escrita faz emergir a psicanálise como “romance puro”, conforme seu desejo, já existia e se chamava James Joyce.

 Freud não perdia a oportunidade de nos avisar sobre o avanço da sua idade e o agravamento da sua doença. Portanto, não estava brincando ao falar de suas preocupações sobre o futuro da psicanálise. Ele temia que a sua descoberta pudesse se transformar em mais uma ilusão que embalasse o futuro sombrio da civilização que ele sentia como se estivesse a desmoronar. Mal tinham sido recolhidos os escombros da Primeira Guerra e já pesava no ar o anúncio de uma catástrofe eminente, mas, no entanto, somente um número muito pequeno de pessoas puderam decifrar com antecedência os sinais de tal anúncio. Freud não se deu conta que o regime nazista, nos anos 30, período que antecedeu a segunda grande guerra, já se constituía no próprio exercício da crueldade com a qual praticou o genocídio contra o povo judeu, da forma como tardiamente conhecemos.

Numa ocasião, li um comentário de Freud sobre o episódio da queima de livros em toda a Alemanha, no dia 10 de maio de 1933, justificado pelo escritor nazista Hanns Johst como a “necessidade de purificação radical da literatura alemã de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã”. Freud concluiu ingenuamente que em outros tempos os poderes constituídos queimavam os autores e naquela ocasião queimaram apenas os seus livros. Não passou pela sua cabeça que logo depois, em 1938, com o cerco se fechando, deixaria Viena para o exílio em Londres, onde cumpriria o seu último ano de vida, por iniciativa da Princesa Maria Bonaparte, que foi sua paciente, vindo a se tornar a primeira psicanalista francesa.

No entanto, o grande poeta Heinrich Heine – que Freud admirava e de cuja obra fez comentários e citações em muitos pontos da sua teorização da psicanálise – profetizou: “Onde se queimam livros, acabam-se queimando pessoas”.

Quanto ao fato do poeta se antepor ao psicanalista, Freud já nos tinha alertado, ou seja, o poeta, o artista, o escritor criativo descobre antes tudo o que só depois o cientista haverá de teorizar.

Tocar na lembrança do Holocausto, desde quando foi planejado, assim como da Primeira Guerra é imprescindível para a compreensão da obra de Freud, mas não para servir de ilustração à teoria que ele construiu. A natureza destes acontecimentos afetou a natureza do pensamento de Freud. As escolhas das vias teóricas e metodológicas que o levaram à terra prometida dos sonhos se deveram não apenas à escuta dos analisandos.

A leitura foi a sua luz & sombra, desde a infância, através da qual esculpiu a sua obra com beleza da forma; a consistência das ideias e o respeito pelo estranho. Dedicou grande parte da sua vida à literatura de todos os tempos; leu os poetas e os romancistas com a mesma curiosidade com que ouvia seus pacientes. Tinha interesse especial pela arqueologia e chegou a comparar o trabalho da análise à investigação dos traços deixados pelas antigas civilizações.

Os estudos de Freud sobre a mitologia foram, entre as suas leituras, aqueles que deixaram mais à mostra os efeitos na sua obra, que o tornaram mais popular e deram maiores motivos para debates. Da mesma forma o seu ateísmo. A esse respeito esxpressou numa carta à sociedade Bnei Brit, 1926, em agradecimento às felicitações recebidas pelo seu aniversário de 70 anos.

O que me ligava ao judaísmo não era a fé – devo confessar – nem mesmo o orgulho nacional, pois sempre fui incrédulo, fui criado sem religião, mas não sem o respeito do que se chama as exigências ‘éticas’ da civilização humana. 

 

A Psicanálise é uma ciência? Ou seria uma arte?

Moderna, a psicanálise?

 

A Prova

Se um homem atravessasse o paraíso em um sonho

e lhe dessem uma flor como prova que havia estado ali,

e se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão

então o quê ?

                                                                  S. T. Coleridge

Sigmund Freud inventa a psicanálise como uma nova forma de tratar os “doentes dos nervos”, a partir da investigação sobre a histeria. Ele morava em Viena e sofreu graves retaliações, por querer tratar aquelas mulheres mentirosas que inventavam doenças. Esse era o pensamento da medicina na época sobre as histéricas, pois nenhum anatomista encontrava em seus corpos a lesão correspondente ao seu mal. A histérica também fazia parte do espectro que identificava os loucos, compartilhando com todos os marginalizados a discriminação, a exclusão e até o confinamento.

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(Charcot experience histeric-hipnotic Public Domain. André Brouillet, died in 1914. – Photo taken art book).

Em 1885, Freud foi estudar em Paris para assistir os famosos cursos que o Dr. Jean Martin Charcot, fundador da neurologia moderna, ministrava no Hospital da Salpêtrière. Esta temporada de estudos foi importante, porque o Dr. Charcot, mesmo sem ter consciência dos desdobramentos do seu ensino, abriu ao espírito investigativo do jovem estudante algumas vias que Freud seguiu sem reservas, o que contribuiu sobremaneira para que mais tarde ele tivesse alcançado o método psicanalítico.

Em primeiro lugar, o Dr. Charcot demonstrava a autenticidade da histeria e dizia que as suas manifestações obedeciam a leis, e que os homens eram acometidos desta enfermidade tanto quanto as mulheres. Para compreendermos a importância de sua posição, é preciso dizer que a histeria só era reconhecida como uma doença que acometia apenas as mulheres.

As manifestações da histeria se dão por um processo denominado conversão, através do qual, vários sintomas podem ser observados apenas nos cinco órgãos dos sentidos e na musculatura voluntária. Portanto, alguém pode apresentar desmaios; paralisias, contraturas; perda da visão, da audição, ou do tato, por exemplo, sem que se encontre nenhuma causa no órgão correspondente. Daí os médicos concluírem que essas histéricas eram mentirosas, inventavam a doença.

As demonstrações do Dr. Charcot eram realizadas também através da hipnose. Ele trazia os doentes, mulheres e homens, para a sala de aula, mostrava o estado em que se encontravam e, depois que um hipnotizador convidado os hipnotizava, dava ordens aos mesmos para que desfizessem os seus sintomas, assim como para fabricarem sintomas que antes da hipnose eles não apresentavam. Quem estava paralítica andava, que não via enxergava e assim por diante. Freud diz no longo artigo “Um estudo autobiográfico”:

Muitas das demonstrações de Charcot começaram por provocar em mim e em outros visitantes um sentimento de assombro e uma inclinação para o ceticismo, que tentávamos justificar recorrendo a uma das teorias do dia. Ele se mostrava sempre amistoso e paciente ao lidar com tais dúvidas, mas era também muito resoluto; foi numa dessas discussões que (falando de teoria) ele observou: ‘Ça n’empêche pas d’exister’, un mot que deixou indelével marca em meu espírito.

Vamos encontrar essa frase de Charcot dita de outra forma, por exemplo: “Que se dane a teoria”, ou seja, uma teoria não impede de certas coisas existirem. Freud tomou esta observação como guia de trabalho até a sua morte. Escreveu e reescreveu a sua obra, fazendo modificações teóricas importantes tantas vezes quanto a prática desmentia conceitos e definições já formulados.

Por um certo tempo, mesmo depois do seu retorno a Viena, Freud utilizou a hipnose para conseguir dar algum alívio aos sintomas apresentados pelos pacientes que lhe procuravam. Mas duas coisas o deixavam profundamente insatisfeito: Algumas pessoas não se deixavam hipnotizar, por um lado, e, ele próprio, por outro, não achava muita graça ao ver desaparecerem sintomas sem que o doente tivesse consciência do que tinha acontecido enquanto estava hipnotizado.

Até que um dia, ele vai visitar uma paciente e ela pede para que ele a escute. Ela quer falar. A importância desse fato é que, até então, os doentes apenas eram falados pelos médicos. Com Freud, a histérica, pela primeira vez, ganha voz própria e toma a palavra. Ela então fala de seu sofrimento, agora através de um processo sistemático de escuta disponibilizado por Freud. O silêncio de Freud  faz surgir, das mentiras ouvidas pelos médicos, uma verdade que  produziu a fundação da psicanálise como novo campo do saber.

Do material que escutava, Sigmund Freud publicou suas primeiras descobertas: o sofrimento psíquico, a angústia, tem suas raízes na infância; a sexualidade está presente desde o nascimento; os sonhos são a realização de desejos inconscientes e infantis. Frente a essas descobertas, ele diz, ainda no seu texto autobiográfico:

Poucos achados da psicanálise tiveram tanta contestação universal ou despertaram tamanha explosão de indignação como a afirmativa de que a função sexual se inicia no começo da vida e revela sua presença por importantes indícios mesmo na infância. E, contudo, nenhum outro achado da psicanálise pode ser demonstrado de maneira tão fácil e completa.

Por isso, Freud demorou a inspirar leitores e adeptos em número suficiente para que a psicanálise pudesse conquistar o lugar de extrema importância que hoje ela ocupa em todo o mundo. Isto não quer dizer que os ataques à psicanálise tenham cessado. Mas lá no início, foi preciso que os pioneiros tivessem a curiosidade própria das crianças, o espírito do aventureiro e a capacidade de um pesquisador incansável para suportarem o ônus por trabalhar com um material até então considerado imprestável para as pesquisas científicas.

Freud escolheu como instrumento de trabalho clínico, apenas os ouvidos, para investigar, através das falas daqueles que se deitavam no seu divã, os processos implicados nos sintomas, nos sofrimentos relatados. Daí, observou a importância não só do que era dito, mas do como era dito. A consequência disso para a clínica foi a criação do dispositivo: “Falar tudo o que vier à cabeça, sem censura”. Sabendo que é impossível dizer tudo, que não se pode vencer a censura em todos os casos, ao analista cabe então essa disponibilidade sem precedentes: acolher tudo o que puder ser dito por quem se dispuser a tal trabalho investigativo sobre aquilo que concerne ao saber que a gente sabe, mas não sabe que sabe. UQ? o saber do inconsciente.

De que saber se trata quando esse saber nos é franqueado pela psicanálise? O que aprendemos quando ela nos ensina a decifrar aquilo que nos chega através das imagens oníricas? Quais diferenças que podemos observar entre os conhecimentos extraídos das reflexões filosóficas e das experimentações científicas e o saber psicanalítico? Porque Sócrates, no século V não inventou a psicanálise enquanto interrogava os jovens em Atenas? A descoberta de Sigmund Freud só poderia mesmo acontecer nos tempos modernos?

A análise que Freud empreende das produções literárias não se direciona para uma análise psicológica do autor; por outro lado, trabalha com a produção significante da narração e destaca os elementos que se expressam através da arte ou da literatura e que também podem ser observados na clínica psicanalítica. Ele deixou claro que o autor só pode ser analisado se ele submeter-se pessoalmente a psicanálise. Isso não foi suficiente para que outros agissem contra o ensinamento de Freud.

 sófocles

 (Reprodução da capa do livro Édipo Rei pela editora L&PM)

O exemplo mais conhecido, ainda que pouco compreendido, da interseção que Freud realiza entre a psicanálise e a literatura é a sua apropriação do tema da tragédia de Sófocles, Édipo Rei, para nomear de Complexo de Édipo, o momento da constituição do sujeito. Ele diz que esse complexo inconsciente tem suas próprias leis e uma lógica inerente ao seu funcionamento e que não se pode ter acesso a esse material de qualquer forma. Uma dessas vias de acesso são os sonhos, que ele chama de a via real para o inconsciente. Uma outra via de acesso é a obra de arte, em particular a poesia e a literatura. Ele observa que muitas das nossas fantasias ou dos nossos desejos jamais poderiam vir à luz sem uma envoltura, sem um véu que recobre de forma adequada o que pode nos aterrorizar, causar estranheza ou recusa.

Por isso, nos adverte que os acontecimentos do nosso mundo interno podem nos deixar apavorados ou mesmo indiferentes se nos forem relatados, ou mostrados de determinadas formas. Basta lembrarmos do início da psicanálise, como os temas como a sexualidade, por exemplo, eram praticamente incomunicáveis, constituindo um dos motivos de resistência ao trabalho freudiano.

No entanto, ele nos diz, se assistirmos a uma peça teatral ou se lermos uma novela ou um conto, onde esses desejos apareçam não apenas na forma de fantasias, mas como atos consumados, podemos contemplar essa experiência e acolhê-la com vários sentimentos os quais, mesmo se contraditórios, não nos conduzem necessariamente a uma posição de negativismo.

Nestes termos, voltemos à tragédia de Sófocles, Édipo Rei. Freud a considerava, ao lado de Hamlet de Shakespeare, um dos exemplos paradigmáticos de como uma obra prima da tradição cultural leva o espectador a se emocionar com a trama de um texto, sem desconfiar que em cena estão colocados os sonhos e fantasias mais ocultos transpostos para a realidade. Trata-se de uma emoção ligada ao reconhecimento de algo que escapa, na ordem do recalcamento, e que se situa entre o desejo infantil e o momento atual.

As obras de artes e, particularmente, a literatura nos colocam, diante da contemplação estética do mundo ao mesmo tempo em que nos fazem defrontar com nosso universo mais íntimo e secreto, favorecendo a criação de um lugar de distanciamento, ali onde somos cúmplices e solidários na experiência da criação.

Nesse momento é importante lembrar que, simultaneamente, à descoberta freudiana a linguística estava sendo criada por Ferdinand de Saussure.  Ele constrói a formalização do estudo da língua como sistema. Pela primeira vez, a linguagem volta-se sobre si mesma e se toma como objeto de estudo. Este foi outro acontecimento que revolucionou toda a história do pensamento no ocidente. Apesar de dar as chaves para pensarmos sobre a estrutura formal da língua, Saussure perde a dimensão do sujeito, o qual, naquele momento, num outro lugar, estava sendo construído como objeto da psicanálise.

O interesse que se mostra nesse encontro faltoso entre Freud e Saussurre para fundamentar esta discussão é que esse sujeito da psicanálise só mais tarde é formalizado e nomeado como sujeito, em sua dimensão significante, por Jacques Lacan, como consequência do seu estudo da descoberta de Saussure.

As leituras ingênuas da obra freudiana não possibilitavam o reconhecimento de sua dimensão filosófica nem do seu pertencimento ao campo da linguagem, propriamente instituído. Apenas nos anos 30, a leitura de Lacan, no seu retorno à Freud, se contrapõe às leituras anteriores procurando, na construção intrínseca ao texto freudiano, a enunciação da sua descoberta. O leitor é, assim, colocado frente à letra de Freud e convocado a reaprender a ler o discurso analítico.

Por isso, conversaremos também sobre Jacques Lacan, o psicanalista francês que dedicou sua vida ao que chamou de “Retorno à letra freudiana”, isto é, passou examinar publicamente os textos de Freud, através de seminários que ficaram famosos em todo o mundo, quando rompe com a Associação Psicanalítica Internacional. Lacan criou uma instituição de formação psicanalítica à luz das academias filosóficas de Atenas, século V, que ele deu o nome de Escola para que a formação dos analistas a partir de então obedecesse à lógica do inconsciente. A pesquisa teórica e a formação do trabalho clínico a partir de então se transforma em objeto da formação que será permanente. Não há diploma. Nem medalhas. O saber advindo da psicanálise só poderá ser transmitido pela escuta e cada analista tem pagar com seu corpo, ou seja, suas palavras.

Os poetas se escritores foram os primeiros a seguirem este caminho.

Para Freud a Arte enquanto conceito abstrato era um farol para esclarecer as intuições; era a bússola para a orientação de tudo que escapasse às medidas da ciência e para dar parâmetros sutis aos impasses do raciocínio. As Artes, uma a uma, foram motivo de pesquisa sobre as formações do inconsciente – os sonhos, lapsos, esquecimentos, ditos espirituosos. Passou toda a sua vida a tentar responder sobre o enigma da mulher; a inacessibilidade racional da música; e o milagre da criação.  Trabalhando em combate contra as neuroses descobriu que

A histeria deriva da própria constituição psíquica e é expressão da mesma força orgânica básica que produz o gênio de um artista.

 

Penso que temos um ponto para seguirmos em linha reta como nas ficções de interlúdio /Álvaro de Campos, que é e não é Fernando Pessoa – como assim?

Freud Explica?

 

POEMA EM LINHA RETA

 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

 

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

 

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

 

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

 

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que venho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza

 

Abaixo, podemos ouvir Moreno Veloso cantar essa música e depois perceber pontos de interseções e de disjunções entre os dois poemas.

Eu sou melhor que você

Moreno Veloso +2

 

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta.

Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa.

Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota.

Todo homem tem voz grossa e tem pau grande,

E é maior do que o meu, do que o seu, do que o do Pedro Sá

Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor.

Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos.

Todo mundo tem suingue, é feliz, é forte e sabe sambar.

Todos querem mas não podem admitir a coexistência do orgulho e do amor porque:

Eu sou melhor que você, Boa viagem.

Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém

Todo mundo diz que sabe e quando diz que não sabe é porque,

é charmoso não saber algo que todas as pessoas já sabem como é.

Todo mundo é especial, é original, é o que todos queriam ser.

Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer.

Todo mundo ganha grana pra dizer que ela não vale nada.

Todo mundo diz que é contra a violência e sempre dá porrada.

Todos querem se apaixonar sem se arriscar, nem se expor e nem sofrer.

Todas querem vida fácil sem ser puta e com reputação,

Se reprimem e começam a dizer:

Eu sou melhor que você.

Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém!

 

É melhor que você,

Mais ninguém é melhor que você.

 

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta.

 

E o que dizer da seguinte fala da Princesa Maria Bonaparte, psicanalista, escritora tradutora sobre o que ela escrevia?

A salvação seria, contudo, extrair da mágoa, uma narração.

 

Aprendi com minha avó, desde menina,

A fazer da cantoria vocação

Assistindo  “Retalhos do Sertão”

Na rádio Borborema de Campina

Zé Limeira confirmou a minha sina

James Joyce com Homero foi casado

Guimarães Flor Lispector encantado

Eu não posso viver sem escritura

Se transforma o criador em criatura

Quando eu canto martelo agalopado

Numa Ciro em

Meu nome é Numa Ciro