Antiguidade Africana e seu Legado no Brasil, com Elisa Larkin Nascimento

A antiguidade africana é muito mais extensa do que se costuma pensar, tanto no tempo quanto no espaço geográfico. Durante milênios, os povos soberanos da África têm sido agentes ativos do desenvolvimento da civilização humana em todo o mundo. Sua influência estendeu-se no mundo antigo à Ásia, à Europa e à América. Apenas durante uma ínfima parte de seu tempo histórico os povos africanos viveram amarrados aos grilhões da escravidão mercantil europeia. No tempo do cativeiro e da colonização, eles continuaram criando cultura e conhecimento.

Na antiguidade africana encontramos as origens da ciência, da poesia, do teatro, da filosofia, da medicina, da matemática, da engenharia e da produção intelectual criativa e artística. Mais tarde, de forma equivocada, e contradizendo o testemunho dos próprios gregos antigos, as origens de todas essas áreas do conhecimento e da cultura seriam atribuídas exclusivamente à Grécia antiga, desconsiderando-se suas matrizes egípcias. Quando se revelava impossível negar a origem egípcia do conhecimento, construiu-se uma série de arrazoados para negar que a população negra africana do Egito fosse autora dessa civilização, atribuindo-a a uma suposta elite branca exógena ou a uma “raça vermelha” distinta da negra. O cientista senegalês Cheikh Anta Diop realizou pesquisas nos campos da química, arqueologia, linguística e serologia que demonstraram a falácia dessas teorias e estabeleceram a civilização egípcia, construída por negros, como a base da matriz africana de cultura e da própria civilização ocidental. Ivan Van Sertima e Runoko Rashidi vêm demonstrando em pesquisas extensas a influência da civilização negra africana sobre o mundo antigo na Ásia, na Europa e nas Américas. Os trabalhos deles reúnem dados levantados em pesquisas realizadas em várias áreas das ciências exatas, publicados isoladamente, as quais convergem para essa mesma conclusão. A linha de pensamento chamada Afrocentricidade, desenvolvida na diáspora a partir da proposta do professor Molefi Kete Asante, da Universidade Temple em Filadélfia, parte desse fato básico para pensar a epistemologia desde uma perspectiva africana, proposta que tem em comum com o quilombismo de Abdias Nascimento. A afrocentricidade constitui a expressão mais recente de uma abordagem afrocentrada que vem se expressando na produção intelectual negra e africana há séculos.

A escravização dos africanos nas Américas, episódio que construiu as bases do sistema capitalista através do acúmulo possibilitado pelo tráfico escravo mercantilista, ocupou um período de apenas 500 anos. Entretanto, esse período passou a ser praticamente a única referência histórica para as sociedades americanas construídas sobre o genocídio dos povos indígenas e a escravidão dos africanos. Esse fato resulta numa distorção histórica e epistemológica que identifica a imagem das pessoas negras e africanas com a condição escrava a ponto de usar como sinônimos as palavras “negro” e “escravo”.

Entretanto, o período de cativeiro foi um período de resistência e de construção da vida em liberdade, em todas as Américas, nos quilombos e nos cumbes, palenques, cimarrones e maroon societies e em outros espaços. Além disso, foi um período de criação de cultura e conhecimento: os povos afrodescendentes nas Américas são os atores e autores de tradições riquíssimas, na religiosidade, na música, na literatura, na tecnologia, nas artes plásticas, enfim: em todas as áreas e atividades humanas.

O legado dos povos africanos no Brasil está registrado em diversas formas e expressões. Abdias Nascimento, cujo centenário será no ano que vem, pois se vivo estivesse faria 100 anos em 14 de março de 2014, é uma referência importante do legado cultural e político dos negros brasileiros. Ele criou o Teatro Experimental do Negro (TEN) e coordenou o projeto Museu de Arte Negra (MAN), além de organizar importantes certames como o 1º Congresso do Negro Brasileiro (1950) e dirigir um destacado órgão da imprensa negra, Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro (1948-50). Ele teve atuação internacional e participou do movimento pan-africano no período de seu afastamento do país (1968-81) e foi o primeiro parlamentar negro brasileiro com plataforma e mandato dedicados ao combate ao racismo e à defesa dos direitos humanos e civis dos negros. Exerceu mandato de deputado federal (1983-86) e de senador (1997-98), além de ser o primeiro titular de duas secretarias do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

O IPEAFRO, instituição que Abdias Nascimento fundou em 1981, hoje guarda seu acervo documental e museológico, contendo registros de várias naturezas sobre sua atuação e das organizações que ele criou. O IPEAFRO também procura dar continuidade a seu legado realizando exposições, oficinas e fóruns de educadores, entre outras atividades. Nesta aula, apresentaremos alguns aspectos desse trabalho, e abordaremos a vida e obra de Abdias Nascimento.

Leitura para aula: QUILOMBISMO

 

Referências Bibliográficas:

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor. Identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003, 414 p.

___ . Linha do Tempo dos Povos Africanos. Site do Ipeafro: http://www.ipeafro.org.br/home/br/linha-do-tempo

NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org). Coleção Sankofa: Matrizes africanas da cultura brasileira (4 vs.)

___ . A Matriz Africana no Mundo. Coleção Sankofa, v. 1. São Paulo: Selo Negro Edições / Grupo Editorial Summus, 2008, 267 p.

___ . Cultura em Movimento. Matrizes Africanas e Ativismo Negro no Brasil. Coleção Sankofa, v. 2. São Paulo: Selo Negro Edições / Grupo Editorial Summus, 2008, 307 p.

___ . Guerreiras de Natureza. Mulher Negra, Religiosidade e Ambiente no Brasil. Coleção Sankofa, v. 3. São Paulo: Selo Negro Edições / Grupo Editorial Summus, 2009, 268 p.

___ . Afrocentricidade, uma Abordagem Epistemológica Inovadora. Coleção Sankofa, v. 4. São Paulo: Selo Negro Edições / Grupo Editorial Summus, 2008, 398 p.

NASCIMENTO, Elisa Larkin; GÁ, Luiz Carlos (Orgs). Adinkra: Sabedoria em símbolos africanos. Rio de Janeiro: Pallas, 2009, 211 p.

 

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(*)  Elisa Larkin Nascimento, diretora do IPEAFRO, é doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (2000), e mestre em direito (1981) e em ciências sociais (1978) pela Universidade do Estado de Nova York. Autora de vários livros, é curadora do projeto de tratamento técnico e preservação do acervo de Abdias Nascimento, organiza o Fórum Educação Afirmativa Sankofa e realiza a curadoria da exposição África-Brasil: Ancestralidade e Expressões Contemporâneas.

 

Foto: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:African_culture.jpg