Apelidos como Bombril, Assolan, Biro Biro, Drogba do Chelsea, cabelo duro, cabelo ruim, creminho, e frases como “quando você vai ficar branca?”, “deve ser difícil ser você!”, “hey, afro!”, são algumas das humilhações que diversas mulheres negras recebem no seu dia-a-dia.
É muito comum no Brasil ler, todos os dias, nos jornais ou portais de notícias, casos de discriminação ligados à questão racial. Um dos momentos muito ruins é quando nós, mulheres negras, atravessamos o sinal de uma rua e ouvimos uma voz dentro de um automóvel dizendo: “Ei, mulher! Vai comprar um pente”, “Que cabelo horrível!”, ou então sempre que passamos perto de alguém desconhecido ouvimos risadas pela nossa condição em sermos negras ou negros e também por não sermos obedientes a ponto de aceitar padrões impostos.
Durante toda a vida, a começar pela escola, existiam os “zoadores” que me rendiam boas horas de choro no quarto da minha casa, na Vila Iguaçuana, em Nova Iguaçu. Eu adorava o ambiente escolar. Achava fascinante a maneira como os adultos conduziam a educação e me ensinavam coisas incríveis. Pesadelo para mim era olhar em direção a grade do CIEP em que eu estudava, localizado na esquina da minha antiga casa, e ver passando o “bonde dos zoadores” que jogavam bolinhas de papel e passavam quase todo o recreio me ofendendo com insultos do tipo “Ah, seu cabelo de Bombril. Sai daqui!”. No auge da minha adolescência, nenhum garoto se apaixonou por mim. Devido ao surgimento da chapinha, todas as meninas negras usavam. Eu só alisava, e quando fazia chapinha nunca me sentia segura. E isso me deixava feia.
O cineasta de “5x Favela – Agora por nós mesmos”, Cadu Barcelos, de 26 anos, morador do Complexo da Maré, era um desses zoadores, não do bonde da Vila Iguaçuana. Assim como eu, existiram e ainda existem muitas outras meninas que todos os dias são humilhadas no colégio e nas ruas por não estarem nos padrões que as campanhas publicitárias e os blogs de moda elegem como bonito.
O Cadu era do bonde de Ramos, no colégio Edmundo Lins, onde estudou de primeira a quarta série, mas também já foi de zoar muitos cabelos em Olaria, onde estudou de quinta a oitava série.
Criado em uma família com negros e brancos, ele afirma que muitas vezes o indivíduo passa a agir e pensar em grupo, ignorando sem perceber a sua própria opinião, gerando a desvalorização de alguém para se erguer dentro de um coletivo. Ao perceber que as suas zoações geravam ferimentos, o jeito foi refletir. “Eu comecei a pensar sobre o que eu estava fazendo. As minhas relações fora da escola, com a arte e com o terceiro setor também começaram a me dar um olhar diferente sobre o mundo, a ver e admirar um padrão não ‘formal’ de beleza, de atitude, de vida que eu não via na TV, jornais e revistas e que eu me identifiquei muito mais. Hoje, por conta das minhas transformações, que não ocorreram na escola, enxergo além do que a mídia e a sociedade pode ver e crio meus próprios preceitos e padrões estéticos”, diz.
Não é nada difícil ver mulheres negras escrevendo nas redes sociais relatos de preconceitos em locais públicos e ameaças provocadas pelo incomodo que o cabelo crespo gera. Seria impossível viver diante disso sem fazer nada. Muitas meninas que gostam de usar seus cabelos naturais não têm apoio. E um bom espaço virtual de encontros, afirmação e ponto de combustível para nós é a página do facebook Meninas Black Power, um espaço muito importante de diálogo que tem por objetivo transformar a visão que uma mulher negra faz de si mesma. “A construção social aponta para uma imagem degradada, negativa, e é por causa disso que nossas características são julgadas inferiores. Mesmo com a crescente divulgação de ‘cabelos afro’ na mídia, ainda há preconceito escondido atrás de falsos elogios. Surgimos para reinventar o conceito de beleza, provar para mulheres aprisionadas às verdades preconceituosas que bonito é ser quem somos”, dizem as organizadoras da página, que hoje se dividem em mais de 65 mulheres entre grupos formados no Rio de Janeiro e Minas Gerais e três em desenvolvimento no Espírito Santo, São Paulo e Rio Grande do Sul. O coletivo fala sobre cabelo natural e como cuidar dele, por dentro e por fora, em diversas plataformas digitais que oferecem diferentes formas de comunicação. “Falamos como mulheres negras e diretamente pra mulheres negras, frisando o valor que há na libertação, valorização da ancestralidade, singularidade das características hereditárias e quebra de qualquer preconceito contra nós mesmas, como somos. Além disso levamos nossa ideia para além do espaço virtual, interferindo diretamente na construção da sociedade, através da inserção em unidades educadoras, falando sobre identidade, equidade e diversidade”, afirmam.
Elas acreditam que não há uma “ditadura do cabelo crespo” e que qualquer movimento em apoio ao cabelo natural e valorização da beleza e cultura negra não são simplesmente modismo e ainda dispensam o rótulo de estilosas. “Dizemos incansavelmente que cabelo crespo é questão de aceitação. Não fazemos lavagem cerebral em ninguém, mas abrimos espaço pra dialogar sobre razões para não suportar a maneira como viemos ao mundo. Ditadura é passar por séculos e séculos de métodos cruéis de alisamento, produtos de diferentes tipos que atacam a saúde física e mental, dependência disso e da aprovação de terceiros pra se sentir bem com a própria imagem, perda de referências ancestrais por achar que elas são ruins, ou qualquer outro tipo de agressão que sempre tentou nos afastar de quem somos e da nossa negritude. Não usamos eufemismos para dizer que somos pretas, crespas e muito confortáveis com a imagem que vemos e por isso temos sido tomadas como ‘radicais’. Bem, radicalismo pior é dizer que só há um jeito de ser aceito no mundo e que precisamos nos sacrificar para entrar dentro desse molde. Não acreditamos mais nisso e vamos estimular essa nova visão. Já passou do tempo de retomar o curso da nossa história e o coletivo Meninas Black Power existe para somar esforços nessa empreitada.”
A estudante de direito Maria Fernanda Anchieta, de 26 anos, é mais um exemplo de mulher que já passou pro situações desagradáveis dentro de seu ambiente profissional. Na rua, os principais impactos que o seu cabelo causa são os olhares de reprovação. “Teve uma vez que uma menina de uns 6 anos chamou meu cabelo de duro e os pais ficaram rindo da situação”, diz ela, que começou a alisar o seu cabelo na adolescência. “A iniciativa foi da minha mãe porque era um ‘processo normal’ para todas as meninas negras com cabelo crespo. Deixei de usar aos 25 anos. Hoje eu me sinto livre, liberta sem ter que cumprir com obrigações, me sinto naturalmente bonita.”
A área jurídica é um lugar formal e que, normalmente, os negros não estão no mesmo lugar que a classe média branca. Maria Fernanda já foi até confundida como uma autora de uma ação criminosa. “O olhar dirigido ao meu cabelo é sempre de reprovação como se ele fosse sujo e desarrumado. A maioria dos advogados e promotores são brancos e ninguém quer uma negra ocupando o mesmo espaço, muito menos com cabelo black. No juizado especial onde trabalho o serventuário sempre acha que eu sou autora da ação e não estagiária ou advogada”.
Diante de tantos histórias, a força de Renata Freitas, mais conhecida como Renata Codagan, prevaleceu. A arte-educadora de 41 anos teve a ideia de reverter essa situação em arte, realizando uma exposição no ano de 2011, na Escola Livre da Palavra, na Lapa, sobre o seu cabelo. A instalação foi dividida em três suportes. O primeiro com fotografia 3×4, que eram registros de penteados e cabelos que ela experimentou desde criança. O segundo era uma trança gigante, feita do mesmo cabelo que ela usa para fazer trança, onde estavam pendurados tudo que ela já havia usado no cabelo: marcel, chapinha, pente quente, baby lise, Guanidina, Henê, pentes diversos incluindo finos, largos e de piolhos, cremes diverso desde Lavanda, neutros, Yamasterol, Kolene entre outros. E o terceiro era um MP3 onde foi gravado histórias que Renata escreveu sobre o seu cabelo, divididas em três décadas: durante a a infância e adolescência, a fase que encontrou a militância e a fase madura atual, onde esse processe estético com o cabelo se tornou mais consciente.
“Quem me auxiliou na curadoria foi a Beá Meira com seu olhar sensível foi me mostrando o quanto aquele material que eu tinha era estético. Iniciei a curadoria catando fotos de diversas épocas da minha vida ai percebi como havia brincado com o cabelo”, diz Renata que, como arte-educadora, usa o cabelo como tema principal de suas aulas. “Esse tema é transversal das aulas que desenvolvo sobre os povos africanos e afrodescendentes. Tenho uma filha de 12 anos que está sempre me trazendo inquietações por ainda viver questões muito parecidas com as que eu vivi na idade dela. Esse tema precisa ser debatido. Precisamos nos libertar.”
Assim como Maria Fernanda, Renata também encarou desafios durante a vida. E continua enfrentando. Há alguns anos atrás ela enviou um projeto para uma escola de classe média alta da zona sul por meio de uma amiga que era professora na escola. A proposta, que foi muito bem aceita pelas freiras durante as negociações feitas por telefone, traduziu uma outra realidade quando Renata colocou seus pés na escola para começar o trabalho. “Na época usava umas transas longas e não era moda como hoje em dia. Quando cheguei senti um tratamento estranho desde a entrada na escola. Mas determinei que iria até o fim. Estava bem treinada para isso. Sentei com uma freira que era a coordenadora pedagógica e ali foi ficando bem claro que eu não serviria para atuar na escola. Na conversa o tempo todos essa freira tentou me desqualificar para o cargo. Uma das perguntas que nunca esqueci foi a seguinte: você tem experiência em trabalhar com crianças ricas? Respondi que estava acostumada a trabalhar com crianças”, contou Renata que carregou consigo uma experiência que comprova que há controvérsias a respeito da história de que o racismo diminuiu. “Lembro de risadas quando caminhava pela escola e da cara surpresa da freira me perguntando ‘você é Renata Freitas?’ com um olhar incrédulo olhado para o meu projeto impresso e para minha cara como se fossem coisas incompatíveis.”
Outra mulher que transforma o preconceito em arte é a artista de Belo Horizonte (MG) Priscila Rezende, de 26 anos. Ela realizou uma performance intitulada “Bombril” em frente ao Memorial Minas Vale. A performance critica a condição dos negros no contexto social. Durante a ação a artista ariou 40 utensílios metálicos — entre panelas e colheres — com o próprio cabelo.
Para a artista, relaxar o cabelo, ou alisar, é só uma das opções, assim como o black power. “Eu acredito que usar um black pode ter significados diferentes. Para quem levanta uma ‘bandeira’ e defende a identificação e valorização do negro e suas raízes vai ser muito mais do que apenas um corte, é uma espécie de mensagem sem palavras, só na imagem. Pra mim, usar um black passou a ser não somente identificação, mas liberdade”, afirma.
Priscila realizou duas vezes sua performance. A primeira vez durou em média 30 minutos, e foi feita na Escola Guignard, onde estudou. “O público era em sua maioria estudantes de arte, algumas pessoas que eu já conhecia, e claro, já tinham certo conhecimento sobre arte. Claro que conhecer sobre performance não tornou óbvio sobre o que se tratava o trabalho, mas acredito que compreensível. Na verdade eu particularmente não gosto que o trabalho soe óbvio, afinal, se algo se torna uma resposta mastigada e pronta, acho que não resta muito o que pensar a partir dali. Prefiro que ainda fique um ponto de interrogação.”
Durante o trabalho, ela percebe que algumas pessoas ficam intrigadas e acham estranho alguém que se coloca ao chão e usa os próprios cabelos como objeto para lavar panelas e afins. “As pessoas acham estranho que eu me coloque ali, e por que? Porque eu personifico uma frase que algumas delas não se incomodam em repetir? Tipo, chamar cabelo afro de ‘bombril’ não tem problema, mas quando alguém torna a frase visível e a imagem soa incômoda, aí não fica legal? Falar não tem problema pra alguns, mostrar na sua cara tem!”
Todo o seu percurso na vida fez com que a performance “Bombril” fosse um trabalho inspirado em relatos, humilhações, espaços em que o negro está inserido. Por já ter sido professora, uma aluna pediu um pedaço do seu cabelo para varrer a casa. “Só não chamei a polícia para registrar a ocorrência pois não tive nenhum apoio por parte da escola que trabalhava, mas não deixei morrer nisso não. O pai da aluna foi chamado na escola, onde tivemos uma conversa juntamente com ela. Deixei bem claro que o que ela fez tem nome, se chama racismo, e poderia até mesmo render um processo, ir para na delegacia, etc.”
Priscila disse que a última vez que fez a performance foi mais interessante porque foi feita na rua, o que permitiu uma circulação maior de olhares. “A performance foi feita ao ar livre, na rua, e pôde ser vista por qualquer um, incluindo pessoas que passavam dentro dos ônibus e viam de relance, sem muito tempo para processar o que estava sendo visto. Achava isso interessante, espero que a imagem tenha gerado mais dúvidas, e questionamentos posteriores.”
Conversei com o Cadu Barcelos no final da apresentação de um monólogo que a atriz Veruska Thaylla e o diretor Anderson Barnabé, adaptaram do conto “Mc k_bela” que escrevi no ano passado. O Cadu, que era um desses zoadores, me contou que teve outras percepções ao ver a Mc k-bela contando e apontando o quanto essas zoações eram humilhantes para ela. “A primeira coisa que pensei foi que a adaptação deve ser vista e discutida dentro da escola, com jovens que estão se formando, que estão buscando se inserir, e, como a Mc K_Bela, se descobrir. Como sujeito, como mulher, homem, artista, descobertas sexuais, religiosas e de o que vai ser na vida.
Um texto que me emocionou, que me fez refletir, com uma bela interpretação que me trouxe incomodo me tirando da zona de conforto e o melhor de tudo, me fazendo olhar pra dentro de mim. Todos somos um pouco de Mc K_Bela, seja na hora de se vestir e querendo se enquadrar em algo para ser mais aceito, seja no nosso discursos sobre o mundo ou simplesmente na hora de arrumar o cabelo”, finaliza.
Yasmim Thayná em texto publicado no site Brasil Post do Huffington Post,
nas fotos a quebradeira da 1a edição Renata Freitas.