Arte Pública e Arte privada por Marcio Rufino
Onze de fevereiro de 2014. Deslizo do Metrô Uruguaiana, altura da Presidente Vargas até a Praça Mauá onde mergulho no MAR de concreto sob o calor do sol, sob o azul e branco do céu. Almoço sandwiches, empadões e bolos com refrigerante. No enorme salão branco entra o grande mago urbano, parecendo uma espécie de misto de druída e pai de santo Amir Haddad. O diretor teatral que encanta, congrega, revoluciona, contesta, celebra, se integra e se entrega ao lúdico rito da vida que é o teatro de rua. Como um profeta do caos contemporâneo, Amir tem a capacidade de nos envolver em seu discurso libertário e inovador, renovando sempre o arcaico, sacudindo a poeira do previsível e reinventando o aparentemente inútil. Os olhos por trás dos óculos de quem viveu décadas a fio de tablados e calçadas a serviço da arte, nos dá a segurança de que vale a pena crer nos nossos sonhos de artistas, destemidos saltimbancos, guerreiros da arte de viver e de fazer.
Com Amir é como se o Deus judaico-cristão e Todo Poderoso descesse de seu pedestal e brincasse de ciranda com os exus da Umbanda em nossa volta e nos cobrisse num fluxo, num manto de energia purificadora e catártica. Como se estivesse saído de uma crônica de João do Rio ou de Lima Barreto, este incrível personagem de si mesmo, assume todas as inquietações e necessitudes do artista de rua; e nos propõe a atentarmos sobre a importância da relação direta do artista com seu povo e sua cidade, nas ruas e nas praças sem distinção de público; agregando vários saberes de várias origens. Nos libertarmos da escravidão ideológica da burguesia protestante.
“A cidade é para quem vive nela e não para quem vive dela” diz teatrólogo. Expandindo o bom humor e esbanjando vitalidade e alegria de viver, Amir em sua palavra se divide entre a determinação de suas convicções político-sociais e a filosofia onírica de sua imaginação criativa.
Ter a honra de compartilhar das ideias e das emoções de um artista como Amir Haddad é ser conduzido a um nível de consciência único, onde enxergamos a arte pública como manifestação, força criadora responsável pela redenção e salvação da humanidade; horizontalidades que nos religa a moradas superiores da alma. Ciência poderosa que nos induz a repensar o mundo em movimento.
Entre o ontem e o amanhã há cultura pública e privada, por Valéria Barbosa
Terça–feira, dia 11 de fevereiro de 2014, chego as Quebradas para compor o grupo em homenagem a Abdias do Nascimento, e lá dando um encantador roteiro de experiências está o artista Almir Haddad, conhecidíssimo entre os clássicos e populares. Eu não o conhecia. Adoro quando descubro que nada sei. E ele trouxe informações claras, pertinentes sob o a cultura clássica e a cultura popular. E levou-me a reflexões visuais, auditivas e profundas viagens sobre o tema.
Dentro de mim, o espirito favelado viaja no ontem e faz uma analogia com o hoje. Desde menina apreciei a cultura nativa do meu povo a popular, e por ter tido a oportunidade de frequentar as casas das patroas da minha mãe e vizinhas também conheci e amei a cultura clássica.
Cabe frisar que o grande Almir Haddad não estava falando de apreciação e sim de valorização pública da Cultura popular, da arte das praças, onde a generosidade da apreciação agrada com doações espontâneas aos artistas.
Pensei em mim, que até bem pouco tempo não tinha uma categoria especifica para a arte que produzo, por simplesmente tê-la intrínseca na alma. Sou poeta na categoria marginal para os acadêmicos. Porém mesmos sabendo de toda a complexidade desta forma de categorização, não me enquadro nesta denominação. “Pqp” se nasci em uma favela, favelizada por uma vida inteira pelo clássico e acadêmico rotulo, não me sinto contemplada nesta categoria e nem a da academia.
Marginal para o meu sentimento não é apenas o da margem, esta eu conheci lavando pratos, limpando o chão descascando seus legumes. No meu espaço jamais fui margem, era meio, era toda. Margem do que? Escrevo poesia e pronto. Sou poeta para os olhos que sabem ler as minhas entrelinhas e não para olhos catedráticos.
Nesta mesma favela conheci Villa Lobos e tive a oportunidade de cantar em concurso de canto e coral no Teatro Municipal e Sala Cecília Meirelles como solista aos 12 anos de idade, repertório variado. No arrepio, no coração disparado, nos olhos marejados clássica na alma popular. Este conhecimento trouxe para o hoje. Canto samba de terreiro e cantigas de axé com o coral N’Kòórin Ólòórum com a mesma emoção que canto no coro Polifonia Carioca as obras de Mozart, Carl Orff entre tantos.
E para consolidar o entendimento desta triangulação Clássico/Popular/Artista, ontem ao passar pelo Largo da Freguesia em Jacarepaguá, vejo um artista vestido de índio, com todos os seus instrumentos de sopro, aparelhagem de som, um sol desafiador por sobre o seu cocar e ele, passeando com a música nos clássicos de Hollywood e nos Italianos.
Por alguns minutos parei e voltei ao ontem e neste presente magnífico onde a Cultura é soberana eu sorri pro vento, agradeci as oportunidades da vida e pensei: Precisamos conhecer tudo, facilitar, dividir conhecimentos para quem se deixa tocar pela arte. O futuro, ah! Este é apreciador do conhecimento e tirará da sua caixa de pandora o melhor para o presente da plateia. Quem sabe um dia eu vire um índio.
Conheço o Amir de todo o sempre. Nunca o conheci bem por pura timidez. Ele sempre foi demais aquilo que eu queria como mestre. Demais. Muita areia pro meu pequenino caminhão. Muita. O que vejo no Amir e que me comove tanto a ponto d eu fugir dele? Antes de tudo a sua totalmente legítima imensa autoridade. Eu vi o Amir palestrando antes da existência do TNR e já era assim. Alegre, direto, descontraído, simples, sem firulas. Tão simples. Apropriado dele mesmo. Seu discurso chega a ser óbvio. Nesta clareira onde mora o Amir só alguns poetas. Vejo no Amir uma mistura de autoridade legítima, força, coerência, lucidez, brincadeira, humanismo e altíssima espiritualidade. De criança filha de pai pobre, intelectual, comunista e ateu fui catequisada na idéia de luta de classe. Mas era contraditório, pois minha família materna tinha feito fortuna na indústria e morávamos na Vieira Souto, endereço da mais alta elite que se pode imaginar. Fiquei confusa. Nem o teatro, minha primeira tentativa de expressão me salvou. Nem o Tablado me tirou da confusão. Como ser pobre entre os ricos e rica entre os pobres? Pobre menina rica, total. O Amir surgiu pra mim na era Tropicalista fazendo uma alquimia que mexeu com a lógica dicotômica da qual até hoje tento escapar. Mas ainda é duro! O poder dicotômico é muito poderoso e fez ninho nas nossas ingênuas cabeças bem intencionadas. Garota de Ipanema subindo a Mangueira no carnaval atrás do Hélio Oiticica? Buscando? sei lá adrenalina. Nem ligava pra maconha. Matar minha imensa e precoce curiosidade antropológica. Como era a vida na favela? Queria saber. Manifestei tudo que me foi permitido até o AI 5, quando fui parar na prisão menor de idade. Queria saber como era a vida fora de Ipanema. Queria muito saber. Fui de carona pra Salvador. Assisti o show de despedida do Gil e Caetano e me auto exilei em Londres para ficar junto deles em Notting Hill Gate. Voltei 12 anos depois com um filho debaixo do braço e quem eu encontro? Amir Haddad! Entre outos claro Angel Vianna, Zé Celso, Chacal, Perfeito Fortuna, não exatamente nesta ordem. Tinha me tornado budista iniciada, me formado em Hatha Yoga, estudado Mímica, Doula, feito dança Afro com congoleses, Teatro na Cartoucherie de Vincennes e antropologia na Ecole Pratique des Hautes Etudes. Só a vida diferente da minha me interessava. Peguei estradas, muitas estradas e sempre encontrei o Amir, grande, sorridente, carinhoso, rindo da minha insegurança. Agora entendo um pouquinho mais, acho que entendo. Procurei, sem saber disso, aprender a lidar com o povo de rua. Condição sine qua non para chegarmos às moradas mais elevadas. Não existe nada privado. Não existe nem a propriedade privada. O privado é uma ilusão. Criada por Hollywood, pela Globo, pela Caras, pelo Capital. Só existe o público. O Sotigui outro grande já dizia só existe o Encontro. Não existe espectador. A minha casa é doméstica não é privada. A minha forma de expressão é a minha contribuição. Serei sim retribuída. Óbvio. Não obrigatoriamente paga. Existem muitas lógicas de troca, lógicas de produção para além da exploração, da mais valia, do lucro. Somos todos atores. Todos sujeitos. Produtores de metáforas. Isso é produção de riqueza. Vamos nos manifestar e ouvir o que uns tem pra dizer aos outros? É por aí, mestre?
Foto de Amir Haddad como Édipo Rei, sugerida pela Rogéria Reis.