Texto escrito por Valéria Milanes, Quebradeira da 7ª edição da Universidade das Quebradas (2016) (*)
Barbárie é pouco para definir o que está (e sempre esteve) sendo gerado contra a mulher, contra “seu corpo” – que, na verdade, pela ‘cultura’ vigente imposta e que não é de hoje, não é “seu”, é para “usufruto” de alguém ou gerar filhos…
Dessa forma, dentro dessa lógica medonha, em si, a mulher não é uma vida ou pessoa… Mas, um “objeto de prazer” ou objeto / animal reprodutor…
Qual a lógica disto? Qual o sentido de assim termos vivido por séculos e séculos e, ainda hoje, além de não haver tão grandes e efetivas mudanças positivas ‘nesse raciocínio’, termos às nossas portas a Idade Medieval retornando sob forma de sentimento político visando gerar o melhor para o povo? O determinismo do que convém! O extremismo difundido, perpetuado e até religiosamente propagado para que haja domínio de “meia-dúzia”, uns para com os outros, repetidamente.
Isso é uma novidade? Não. Como também não é (ou não era, até esses tempos atuais) motivo de discussão em um contexto mais amplo. Assim foi, tem sido devido a normalidade da cultura de diminuição de um grupo, uma classe (para então chamá-la de minoria); portanto, sempre foi uma conduta tida como sendo normal, geral, legal, quando na verdade é o resultado do desejo de subjugar seres, com origem na prepotência cultuada de que alguém pode determinar, julgar, (pré) conceituar acerca da vida de outro alguém. Prepotência enraizada, alimentada! E, desde muito tempo, fortificada pela naturalização da violência e consequente impunidade… Resultado da grande cultura deturpada, na condução modificada do “penso, logo sei tudo”… e que “virou: sou homem, posso tudo”, e onde somos “convidados”, mesmo sem perceber, a generalizarmos pessoas, vidas, inclusive como inferiores e superiores; exaltarmos soberbamente nossas qualidades em detrimento das dos demais; sermos quem escolhe em ‘qual clube’ vai se alojar para então denegrir o ‘outro clube’… A massificação da competição que parece normal, mas tem raízes e objetivos muito mais sombrios do que apenas determinação de agentes em um jogo ou exteriorização sadia da rivalidade, por exemplo. Isso, genericamente, falando, inclusive… Pois, o objetivo real é generalizar – mesmo – dados, fatos, verdades, características…, e, assim fazendo, nada tem grande importância no sentido de indivíduo membro da sociedade, somente o TER é o termo de valor…
Nessa política tida como especial: Ter é maior do que o SER… Pessoas são incluídas nessa categoria “do Ter”. E por isso, nessa lógica, a escravidão fez e ainda faz “todo o sentido” (vide a história da humanidade e seu tratamento para com os negros, indígenas…), e as mulheres, foram e ainda são, o protótipo do ‘produto perfeito’ para ter… “Dono”. Daí temos os rótulos convenientes – que são jogados (em todas as camadas sociais) como fator comum ou senso comum, pois nesse ponto não ‘precisa haver divisão’, uma vez que o objetivo não é a solução, mas a confusão de valores, seja onde for:
Mulher, o Sexo Frágil – quando se é sabido, não só cientificamente, mas no dia a dia que a mulher é muito mais guerreira do que um homem, inclusive quando na subserviência dos afazeres domésticos cumulativamente com outras jornadas: de mãe, de profissional, onde também é discriminada… Algo que ‘ela aprende’ desde a infância, desde o conjuntinho de chá recebido no “Dia das Crianças”;
Mulher, o Sexo Inferior – quando já é comprovado (para aqueles que “só enxergam a ciência” como fonte de definição de algo), que, por exemplo, no campo cerebral não existem diferenças para se definir um cérebro masculino de um feminino; as conexões são diferentes, mas diferente nunca quis dizer Inferior em dicionário algum, embora essa seja uma regra de definição dada pela sociedade para as… Minorias!
Assim tem caminhado a humanidade… As regras sobre a conduta das mulheres são inúmeras, assim como são inúmeros os motivos para rotulá-las, como vimos pequenos exemplos acima. Seu corpo tem regras de como se comportar, vestir, andar… Enfim, tudo para dizer (e a sociedade tem aprendido direitinho há milênios): via de regra, a mulher tem de ser “submissa, boa esposa, recatada e do lar”… Se assim não for, merece todo dissabor! Deixa de ser um alguém, como uma mãe de família; deixa de ser uma filha; deixa de ser uma pessoa com direitos tanto quanto tem deveres; deixa de ser alguém que sente dores para ser “Uma coisa”. A coisa, objeto de propriedade constante ou passageira; que pode ser agredida, ser abusada, ser desrespeitada. Pode ser xingada, se ela tiver opinião diferente diante de onde estiver presente; pode ser vista como “um pedaço de carne” a ser subjugada, pode ser estuprada… E, como não bastasse, ainda, juntamente, pode até ser piada, modelo de brincadeira sem verdadeira graça em programa de TV ou personagem de horror (fazendo o papel real de vítima) espalhada em redes sociais, como no caso recente em que trinta (30) homens ou mais estupraram uma adolescente e acharam isso uma curtição… Sendo certo que estupros NÃO são casos isolados, nem mesmo os casos coletivos, basta buscar notícias e estatísticas, para termos contato com uma realidade monstruosa, mas que, por não ser por todas as vias públicas e privadas repudiada, e devidamente considerada na busca de transformação deste quadro, parece (só parece) que não existe…
Analisando esse quadro (ou quadros, pois são muitos) bizarro, a primeira questão é: O por quê de tudo isso, qual a origem disso? Fruto, também, dessa cultura misógina que temos absorvido (ódio, desprezo ou repulsa contra às mulheres) – e de tão corriqueira parece nem ser preciso ser combatida -, mas é imunda, tacanha, vergonhosa, e tão comum que muitos, ao contato com esse post, terão um estalo em sua mente: – Ah, que exagero! Que vitimismo… Que feminismo! Ou ainda: – Ela buscou isso, se estivesse em casa – recatada e do lar, lembram?, sendo empregada de algum ser do sexo masculino – isso não aconteceria… Um dos raciocínios mais simplistas (que não quer simplificar nada, na verdade), generalistas, existentes apenas, sem verdadeira expressão e sem fundamento, sem conhecimento, visando apenas justificar que: “As mulheres merecem”!
Com relação à violência, desrespeito quanto à integridade física, emocional, pessoal sofridas pela mulher, essas vêm acompanhadas ainda de desvalorização, porém, alguma coisa desse tipo acontecendo com um homem, o normal é ver como possibilidade de ser fatalidade ou ter sido vítima de abuso mesmo, mas com a mulher… De alguma forma, ela tem “50% de culpa também” – palavras de comentários em redes sociais (de homens, principalmente, mas não somente), apenas com o intuito de julgar, sem nunca, ao menos, tentar remediar… Se fosse algo com fundamento, a lógica não seria justificar, já que nada justifica isso, e também porque as mulheres estão sendo estupradas ao saírem para o trabalho, dentro de suas casas e até… dentro de seus casamentos…! Estupro é crime!! Seja onde for cometido ou qual o motivo que, por ventura, alguém “se julgue no direito de praticá-lo”… Continuará sendo… Hediondo CRIME!!
Entretanto, nem todos assim podem ver e por quê? Também pela desimportância de que somos doutrinados com relação à vida alheia e, mais replicado ao quadrado, com relação às mulheres. Um culto desenfreado ao Ego (que cresce em tamanho, mas não na mesma proporção em conteúdo melhorado, no tocante à classe masculina). Disseminação de que importante é o que queremos, sentimos, podemos, achamos que precisamos, porém pela ótica do “EU sozinho”. Importante é o “Eu”, irresponsavelmente… E o “nós” é uma utopia – bonitinha para ‘curtir’ nos posts, timelines e perfis, mas, na prática, no dia a dia, a monstruosidade do individualismo é quem deixa marcas.
Já é tempo da sociedade acordar para notar, imediatamente, para além de discrepâncias culturais contaminadas e/ou vilipendiadas e saná-las; não esquecendo também que, por onde falta conscientização em larga escala, há espaço para prevalecer o barbarismo disfarçado de desconhecimento; assim como acontece a sordidez amparada pelo oportunismo… Também essas características na raça humana não são novidade. Novidade será ver a sociedade buscar novos rumos além da autodestruição; perceber que não cabe ‘ao Estado’ somente buscar soluções, disseminar cultura e determinar o que ‘devemos enxergar’. Cabe à própria, em si mesma, cobrar, fiscalizar atitudes do Estado, bem como olhar para si e traçar novos rumos, ao invés de “apenas se vitimizar”, com discursos e ausência de atos para tudo o que precisa ser feito, conquistado, e que não temos “por causa de que o governo é quem deixou de fazer”. Para aqueles que estão com a consciência ativa, é preciso agir… Para aqueles que ainda dormem, precisam acordar!
Quem somos nós nas mazelas das vidas dos outros? Somos todos culpados! Quando nos calamos, nos ‘vitimamos’, só nos enxergamos… Quando não nos solidarizamos. Somos todos culpados quando só agimos para buscar onde está ‘a farinha pouca, pois o que importa é o meu pirão primeiro’, porém não buscar construir algo que não falte para um todo; e, não perceber a necessidade de revitalização da parte que está putrefata, morta, há muito tempo, na raça humana…
Somos todos culpados… Assim como somos todos vítimas, porque, em uma sociedade que é permeada pela crescente (e tida como comum) bizarrice, pela razão da bestialidade, o próximo atacado, em qualquer nível de violência, pode ser… Você!
(*) Disponível no blog Poesia.com.Reflexão.