Em minha participação no território das Quebradas, resolvi falar um pouco sobre um projeto artístico que comecei cerca de três anos, e que fui desenvolvendo desde então. Quis explorar a relação entre a fotografia, a pintura/gravura, elaborando nestes dois campos trabalhos que tivessem como ponto inicial uma foto. Assim, iniciei uma pesquisa (que resultou em uma exposição, que aconteceu cerca de dois meses), que batizei de Negativos.
Quis desenvolver um projeto artístico rico em possibilidades interpretativas, tendo como base não a pureza de uma técnica, mas a ampla liberdade de fusão de elementos. A tradição aliada à urgência contemporânea. O belo ao feio. A possibilidade da poluição, do erro, e até mesmo da imperícia como caminho e possibilidade para o acerto.
O título do projeto é ambíguo e esclarecedor. Ao mesmo tempo carrega uma interpretação dúbia: remete ao negativo fotográfico, como matriz e como algo possível de ser reproduzido, assim como remete a algo propriamente negativo, que exerce tal função, como verbo direto.
A inversão de uma imagem, o contrário de uma imagem, remete diretamente a um negativo de um positivo inicial. O que é um dispositivo, uma maneira, um jeito de unificar as duas coisas em uma só, devido à possibilidade de sua reprodução, inerente à sua característica.
Proponho aceitar também o negativo como ideia de um erro propriamente dito. O risco de encontrar no caminho resultados indesejados, inesperados, agregando tais resultados como frutos de um caminho. O que pode ser manchado, escorrido, amassado, borrado, como obras do acaso, do que possa ser, paradoxalmente, impossível de se evitar, embora a consciência de que tais resultados poderiam ter sido evitados segundos após a percepção de que ocorreram. Agarrar, abraçar esses resultados como cicatrizes presenteadas pelo percurso criativo trilhado.
O erro e o acerto como coisas unificadas, embora predomine a possibilidade do negativo como caminho para o positivo, e a certeza do positivo como algo negativo.
“Em arte existe mais uma expectativa de ocorrência do que hipótese como é entendida em sentido científico lato. Enquanto a função da hipótese em ciência é fornecer a conexão entre a teoria e a investigação, em arte a hipótese não assume forma tão rigorosa, sendo mais um desejo e uma expectativa do que poderá ocorrer em termos de resultado final” (ZAMBONI, Silvio, A pesquisa em arte, Campinas, Autores Associados, 2006, p. 63).
Referindo-me de modo coerente à citação acima, tive essas expectativas em relação a pesquisa feita:
- Pesquisar modos de conectar a imagem fotográfica a um outro meio, estilo ou modo expressivo, com o objetivo de fazer com que essa união possa ser multi-interpretativa pelo sentido, ao mesmo tempo em que se torne um objeto unificado.
- Fazer da multiplicação caracterizada por alguns dos meios escolhidos uma forma de fazer com que um único trabalho possa ter, não cópias, mas “fantasmas”, obras únicas oriundas de uma única matriz.
- Lidar com a possibilidade de releitura de imagens alheias, do ready made, não de modo puro e simples de se apropriar, mas com o objetivo transformador de dar corpos e auras diferentes aos objetos originais.
Propostas semelhantes de outros artistas
Pode-se dizer que desde o advento da fotografia, ou pouquíssimo tempo depois de seu surgimento, ela passou a ser usada, se não com fins diretamente artísticos, mas também como base de inspiração e referência para alguns artistas. Um exemplo clássico foi a influência que os estudos de movimento com a utilização de múltiplas câmeras, elaborado por Eadweard Muybridge, exerceu em alguns pintores da época (Degas, dentre os mais conhecidos), após a publicação da sequência fotográfica “Animal Locomotion” em uma revista, no ano de 1874.
No texto Pequena história da fotografia, de 1931, e no clássico A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, de 1935, Walter Benjamin descreve detalhadamente como tal influência se espalhou por todo o mundo. Artistas que antes ganhavam a vida pintando quadros (tendo esses a principal função de retratar pessoas, a grande maioria feitos por encomenda), se viram perdendo seus clientes devido ao novo invento, já que a fotografia além de ser um objeto mais barato e com resultados mais precisos e instantâneos, ainda tinha a vantagem de ser facilmente móvel. Diante disso, muitos pintores ampliaram seu campo de trabalho trabalhando também com fotografia, além de usá-las como referência para diversos tipos de composições pictóricas.
No que me diz respeito a citações, minha principal área de interesse nesse projeto foi a Pop Arte americana, em que a fotografia era largamente utilizada. Por exemplo: Os trabalhos, sejam pinturas ou serigrafias de Andy Warhol, em que utilizava fotos de diversos personagens da década de 1960; em trabalhos de Robert Rauschenberg, em que eram utilizadas fotos, manchetes de jornal, dentre outras imagens; nos de Richard Hamilton, que ficou conhecido por composições em que utilizava recortes, fotografias, e anúncios. Esses são apenas alguns dos diversos artistas do período que fizeram uso da fotografia como meio e influência para trabalhos icônicos daquele período.
Na Arte Contemporânea, a fotografia fortaleceu sua presença, sendo utilizada das maneiras mais diversas, desde referência para artistas hiperrealistas até como suporte para composições. Artistas como Gerhard Richter, Cindy Sherman, Jenny Saville, dentre tantos outros.
Outra área em que a fotografia e a pintura se fundiram com sucesso, ainda que não tenha sido, em princípio, para fins artísticos, foi na fotopintura, sendo a nordestina a que mais me chamou a atenção e serviu de influência para alguns trabalhos. O método de colorização posterior a uma fotografia que foi revelada originalmente em preto e branco produz um efeito (que talvez seja inevitável: o de parecer falso) que sempre me pareceu interessante.
A metodologia utilizada nesses trabalhos foi, basicamente, de caráter empírico, baseando-me principalmente na experimentação, no aprendizado das técnicas utilizadas e no convívio cotidiano dos ateliês (de litografia, gravura em metal, xilogravura e o de pintura), nos dois últimos anos da faculdade, principalmente.
Os trabalhos partiram da ideia de criar composições em que utilizaria fotografias próprias ou encontradas ao acaso, de pessoas conhecidas e famosas, amigos e familiares, intervindo nessas imagens sem estabelecer regras muito precisas para isso. De modo que considero, em todos os momentos desse processo, um método livre, flexível, aberto a experimentações, e que, por fim, encontrou uma unidade.
Nas litografias, utilizei a técnica da transferência, utilizando uma fotocópia pra transferir a imagem fotográfica para pedra litográfica, tendo a partir de então a base, o pano de fundo pra que eu manipulasse a imagem inicial, inserindo ideias previamente concebidas ou que surgiam por acaso.
Por vezes, as fotografias serviram apenas como referências para desenhos e estudos utilizados em alguma composição, o que é o caso de algumas xilografias. Em outras, também utilizei a técnica da transferência.
Explorando as peculiaridades das técnicas utilizadas — xilografia, litografia e pintura (aquarela em especial), sendo que em alguns casos utilizei técnicas mistas — e através do conhecimento acumulado com diversas experimentações, foi possível realizar a transposição da imagem fotográfica para outros meios, direta e indiretamente. Creio que algumas das ideias apresentadas ainda estão em um nível embrionário, e que espero seguir desenvolvendo-as com o passar dos anos.
Com o desenvolvimento deste projeto, vi o quanto pode ser variável a maneira de execução, e, principalmente, de fruição das obras apresentadas. Ao lidar com uma imagem fotográfica manipulada ou não, ela pode obter diferentes maneiras de uso, seja o de aplacar a nostalgia ou saudade de quem está sendo retratado, seja como propaganda, ou com o fim de eternizar um acontecimento, além, é claro, de todo campo subjetivo possível durante o processo artístico, com sua infinidade de possibilidades.
O local em que o trabalho está inserido, se em uma galeria de arte, envolto em uma moldura, ou se grudado em um poste, se a imagem está retratada em um outdoor, em um quadro dentro de um museu, ou oculta dentro de um camafeu… cada um desses locais talvez abra um modo diferente para que uma mesma imagem seja sentida ou apreciada. Talvez essas possibilidades sejam infindáveis, lidando constantemente com a presença imagética se contrapondo à ausência real do retratado.
Não sei mensurar com exatidão até que ponto obtive sucesso ao lidar com isso, e o desafio de desvendar, pesquisar esse tema com abordagens que nunca vão ter um fim conceitualmente unânime (ao menos no meu modo de entender) foi um dos principais estimulantes pra escolher o desenvolvimento dessa ideia como objeto de pesquisa. Com erros e acertos (talvez com erros mais constantes, mas sempre à procura de um caminho verdadeiro), mas com amor a essa busca, que me parece não ter fim.