Data: terça-feira, 3 de setembro de 2013 | hora: 9h41
Delano Valentim é desses poetas que escrevem como cantores de rap e e ainda é desses rappers que cantam como quem escreve uma crônica urbana. Seu blog, cujos textos literários passeiam entre Lima Barreto e Charles Bukowski, possui musicalidade quase que à capela, dando assim um tom mais cru, porém urgente. Sua rapidez é compatível com a velocidade que navegamos na internet, porém, como ele mesmo percebe, poucos apreenderiam o que de fato sua mensagem quer dizer.
Em entrevista bastante sincera e serena, Delano nos revela o que é ser um “artista do subúrbio” na era tecnológica. Diz que, embora não seja do morro, e apesar de sua literatura falar também da periferia, ela nasce do asfalto suburbano (do bairro da Penha). O próprio termo “periferia”, segundo ele, tem em sua nomenclatura diferenças geográficas daquelas empregadas em cidades como São Paulo, por exemplo.
Suas expectativas não são das mais otimistas, partindo da perspectiva de quem produz cultura em um país que põe a educação em último plano. Seu desencanto durante muito tempo entrou em conflito (e ainda está) entre o artista e o membro da classe proletária que vive a constante eminência de ter que “cortar cabelo, fazer a barba e arrumar um emprego” para sobreviver. Desse conflito, os anos trouxeram sua primeira publicação (Todo mundo é Jhow!, editora Móbile Editorial, ano 2012), cujo título vem de uma gíria do tempo em que o mundo desconhecia a força que a internet tem hoje). Esse livro foi premiado na categoria de Melhor Romance, pela Secretaria de Estado da Cultura, para os Novos Autores Fluminenses.
E, apesar disso, Delano parece não se iludir com o mundo tecnológico e as possibilidades de disseminação de sua arte que esta tecnologia pode causar, uma vez que ele acredita que algo parece ter se perdido ou simplesmente nunca ter existido nas pessoas em se importar com a busca do novo. De qualquer forma, sua literatura (ao menos o que revela seu blog) não pode deixar de ser e de falar do que está à margem da sociedade, porque ela é suburbana. E ser suburbano é pertencer a esta periferia, porque ela fala dos excluídos, e ser excluído é ser invisível, porque não faz parte de uma cultura centralizada. Em resumo, sua arte fala da realidade da periferia, em que muitas vezes esta periferia parece ser ignorada dentro dos espaços urbanos. Leia esta interessantíssima entrevista e conheça um pouco desse polivalente artista.
JC Anjos – Bom, confesso que não tive (ainda) acesso ao seu livro, que foi premiado recentemente, mas ouso dizer, baseado no que li em seu blog e ouvindo suas canções, que você conseguiu transpor a linguagem do rap para literatura. Consequentemente, sua narrativa é rápida e, por isso, urgente às necessidades que nós, indivíduos da era da internet, precisamos para absorver conteúdo em pouco espaço de tempo. Por outro lado, você fala pela periferia. Não estaria aí surgindo uma verdadeira estética literária, vinda dos guetos, que não àquela canônica e centralizada da academia em favor de outras linguagens, como foi o surgimento do rap na música e o grafite nas artes visuais, que falam desse gueto dentro da urbanidade? Gostaria que você falasse um pouco disso em relação ao seu trabalho.
Delano Valentim – Não acho que fale pela periferia, e sim a partir dela, também. Pois sou do asfalto da Penha, do subúrbio carioca, que é diferente de periferia. Aliás, periferia é um termo que se enquadra mais à geografia de São Paulo, pois o gueto aqui não necessariamente é periférico, ou seja, longe do centro. Tem os morros da Zona Sul. Esse termo entrou em voga na década de 90 do século passado, junto ao aumento das ONGs, e a ocupação de um espaço maior para o rap nacional, via SP. Mas eu falo de um subúrbio peculiar que se confunde com a favela, mas não é a favela. É híbrido e relaciona-se com suas idiossincrasias dentro das escolas públicas. Na área nobre da cidade, talvez as pessoas dispostas se misturem na areia da praia. Aqui essa relação é mais estreita. Porém, nem sempre, menos tensa. Pelo menos no meu romance Todo mundo é Jhow!, e em muitos contos e crônicas, eu tento evitar os estereótipos ao falar do subúrbio que ainda não foi mostrado com toda a sua pluralidade. Sobre a literatura, não tem que ser maçante ou cheia de firulas. Sobre os meus personagens, em sua maioria, eles são da periferia, mas os seus dramas são universais, que são três ou quatro preocupações humanas que realmente importam e que a maioria de nós tem — não sei se foi Aristóteles que disse isso. Não sei se é uma estética literária nova, vinda dos guetos, mas com certeza é algo à margem das academias. Pois a academia cria uma regra para que exista um domínio sobre o conhecimento. Imagine se todo mundo for bacharel, quem é que vai varrer o chão? É por isso que se tem esse controle através do diploma, do curriculum vitae, do sabe com quem você está falando? E essa treta toda. A Matrix precisa manter o controle que está em nossas próprias mãos. Só que nós, não sabemos. O Capetalismo! como diria o Profeta Gentileza. Como disse o professor Milton Santos sobre a globalização naquele documentário[1], o problema é que não vai ter para todo mundo. Hoje, com a internet, fica mais difícil manter o controle sobre a informação do que na época do Getúlio Vargas, que Deus o tenha. Mas ainda existe certo domínio que vem baseado em preconceitos antigos que estão incutidos em nosso DNA. Hoje você pode assistir às aulas de Yale no YouTube. Mas com certeza ter um diploma é melhor, pois dá respeito, prestígio e dinheiro. Mas você não pode impedir que o outro, sem nunca ter pisado numa sala de aula, com a ajuda dos livros e da tecnologia, é claro, saiba tanto de Sartre quanto você. Mas às vezes se acaba numa faculdade estudando os feitos de alguém que nunca pisou numa dessas instituições.
JC Anjos – Você acha que jovens da periferia se identificariam melhor com a literatura do Todo mundo é Jhow! do que os clássicos impostos pelas escolas públicas?
Delano Valentim – Com certeza. Entre os leitores do meu livro existem amigos com experiências de vida variadas, e todo mundo gostou do livro… Foi o primeiro livro que um deles leu, já adulto, mas ainda em processo de alfabetização. Talvez, por causa dessa linguagem a qual você se refere, mas que nem sempre é proposital. Escrever muito não é escrever bem, diria Henry Miller. Considero um crime dar Machado de Assis para um menino que implica com o português de sua própria época, imagina como ele lida com o português da época do autor. Quando li esses clássicos, só comecei a me acostumar à linguagem diferente depois de algum tempo. Mas é um prazer infinito ler livros como O cortiço,[2] ou Dom Casmurro. Embora eu saiba que em suas épocas eles talvez fossem livros com linguagem considerada popular.
JCA – Delano Valentim vive de sua arte ou existe alguma identidade de subsistência na qual ele precisa esconder o verdadeiro Delano para pegar no trampo?
D.V. – Eu vivo da minha arte, e para a minha arte. Mas às vezes dá no saco também. Todo dia quando eu vejo as plaquinhas de emprego nas ruas, fico pensando se não chegou a minha hora de cortar o cabelo e raspar a barba. Pois é aborrecido ser artista num país em que a cultura é tratada como uma piada. A minha mulher entra na frente e me impede de desistir. Henry Miller disse que os artistas eram tolerados tanto quanto os presidiários. Concordo. Eu poderia processar o governo brasileiro pelos serviços que prestei à cultura desse país sem ganhar um centavo. Todo mundo tem que entender que cultura é necessidade, pois ajuda a criar senso crítico, se é que todo mundo quer isso. Nem sempre funciona. Mas, às vezes, funciona. A pessoa já tem pouca vontade, e pouco incentivo para algo diferente, e aí sempre parte para o mais fácil, que é balançar o rabinho. Todo mundo tem que ter o direito de escolher. E as pessoas não estão tendo, ou não estão querendo tê-lo, ou escolheram isso mesmo. Aqui é um lugar em que não se pode apenas ser artista. Para você ser artista tem que puxar o saco de todo mundo, tem que ir numa porção de festas, não pode falar nada que todo mundo se ofende. Não pode pisar na bola. Tem que ser bonzinho. Eu não sou assim. Tenho as minhas vacilações. Sou fechado. Tímido. Mal-humorado. Pareço o Fernando Pessoa do Poema em linha reta. O artista aqui tem que fazer projeto social e não pode se preocupar apenas com a sua arte. Digo de segmentos não populachos, que com os outros eles nem se preocupam. É maior saco! Aí te boicotam, e tudo isso vai enchendo o saco. Eu já não gosto de sair de casa… O Ferreira Gullar disse numa palestra, se referindo ao Van Gogh, que quando chegasse a hora de cortar a orelha, ele pulava fora. Eu acho que eu também. A última coisa que fiz foi gravar quatro músicas na semana passada. Mas ninguém escuta, está todo mundo sem tempo, então é mais fácil ouvir o que toca por aí, e que foi escolhido pela maioria. Sou um workaholic. Mas às vezes entro numa prostração. Faz semanas que não escrevo nada. Não crio mais nada. Só não deixo de tocar minha viola, ler e ouvir música todo dia. Mas nem sei se vou produzir mais. Pois tudo que faço no momento eu penso estar aquém do que poderia ter feito. Até porque sou compulsivo, e muita coisa que escrevo corresponde a um momento. Mas depois sempre me arrependo. Igual ao Raul Seixas, que dizia ter medo de escrever, na música “Paranóia”. Digita Delano Valentim no Google e vê a quantidade de coisas que já fiz. Mas a Fluoxetina e o Clonazepam também me ajudam a seguir. Junto da paz de Deus, é claro.
JCA – Quais são as suas influências culturais? Entende-se em todas as áreas: música, literatura, poesia, artes visuais etc.
D.V. – As minhas principais influências estão na literatura (leitura em geral), música (quase tudo) e cinema (pouco, mas significativo).
JCA – Em uma entrevista que você concedeu à TV Uerj (veja logo abaixo dessa entrevista), você falou que seus escritos, de modo geral, não falam apenas da condição social, mas das condições comportamentais, do modo de vida das personagens que são tratadas no livro e o blog. Do cotidiano. Muitos cronistas trataram disso e de uma perspectiva suburbana, como é o caso de Lima Barreto. Tirando a questão temporal (se isso é possível), quais as semelhanças e diferenças entre seus trabalhos, sejam eles textos ou músicas.
DV – Não consigo diferenciar meu trabalho literário do músical. Como já disse, trabalho em função de ideias. Às vezes uma delas se apresenta melhor em determinado formato. Por exemplo: eu faço cinema, e já fiz teatro; e essas possibilidades estão sempre abertas. Embora pense que as minhas músicas seriam facilmente trilha sonora dos meus romances. Acho Lima Barreto interessante, João do Rio, Nelson Rodrigues, José Louzeiro, coincidentemente muitos jornalistas Serendipitosos, Hunter Thompson, Gay Talese, George Orwell, Garcia Marques, Mario Vargas…
JCA – Você se considera um poeta? Não somente um poeta de declamação, mas da música, como às vezes é de fato o que ocorre em exemplos como as capelas dos rappers?
D.V. – Eu me considero um letrista. Mais letrista do que qualquer outra coisa. A literatura eu acho coisa dos deuses, e muito distante de um reles mortal como eu. Mas escrevo. Eu tenho os meus ídolos letristas, intocáveis. Desenvolvi muito essa função de letrista. Gosto de escrever dentro de estúdio. Gravar na hora. Adoro esse desafio. Mas também gosto de escrever conto, crônica, ensaio. E romance quando o coração está na boca. Só para lembrar, no Brasil estão os maiores letristas do mundo. Cartola, Noel, Chico, Brown, Caetano, Raul, Renato, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Belchior, Zé Ramalho… enfim…
JCA – Você tem contato com outros rappers cariocas?
D.V. – O pessoal que conheço da antiga eu vejo por aí em ponto de ônibus de vez em quando. O pessoal mais novo eu escuto as músicas, ouço falar, mas às vezes não consigo ligar o nome à pessoa. Não vejo ninguém em eventos, porque quase não saio de casa. Quando saio, dou um pulo na Lapa ou em Madureira. Mas isso é muito raro. Aqui na Penha conheço gente que canta, gente que não canta. Mas gente ligada à cultura. Estou sempre trocando ideias com eles. O meu amigo Brou (o mesmo que me ajuda a divulgar os livros), e o meu amigo Mais Preto (tenho uma música com ele) que são instituições em se tratando de hip-hop. O meu trabalho hoje é solitário mais por causa de timidez. E do cansaço ou da preguiça de correr atrás dos outros. Embora já tenha trabalhado com muita gente, até mesmo em bandas. Às vezes vem uma melodia, ou uma letra, e eu corro para o estúdio pra gravar sozinho. Mas teve um DJ gringo, D. A. Cruz, ele é lá de Luxemburgo. A gente nunca se viu pessoalmente, e ele tem lá maior trabalho bacana. Ele fez uma porção de remixes das músicas, e me amarrei. Os clipes são a mesma coisa, quando o Dudu que é o cineasta da área, arruma uma câmera, pois a minha quebrou, e a gente diz: “Vamos pra rua”. E a gente grava alguma coisa.
JCA – Como você se definiria como agente de sua produção cultural? Artista, poeta, escritor ou musico?
D.V. – Acho que eu sou uma pouco de cada coisa.
JCA – Em um texto seu no blog, “Perdi a Minha Primeira Gravação…”, você fala de uma fitinha e de um tempo em que se perguntava “você é do hip-rock?”. Inevitavelmente me vi revivendo situações que para a juventude de hoje seria uma piada. “Como uma fitinha K7 poderia ser porta de entrada para grandes gravadoras e ao mesmo tempo poderia ser mero material para o cesto de livro?” – eles perguntariam. – Hoje, praticamente não precisamos da MTV, porque temos o You Tube; não precisamos de gravadoras, porque gravamos nossas canções na própria casa; e ainda podemos publicar livros hoje, de boa qualidade, em gráficas com custo viável a nossa realidade econômica, sem ajuda direta das editoras. Como foi o processo de publicação de Todo mundo Jhow!? A propósito, quem é da antiga, sabe o que esta palavra significa, né?
D.V. – Publiquei a primeira tiragem do livro com recursos próprios. Cem cópias que rodam por aí e que algumas pessoas me ajudaram a divulgar. Um amigo conseguiu que umas 15 pessoas lessem o livro aqui na Penha. E tive um feedback positivo da maior parte delas, o que foi bastante estimulante. Ganhei o prêmio de melhor romance da Secretaria de Estado da Cultura para os Novos Autores Fluminenses. E tive o livro publicado pela Móbile Editorial. Com certeza os da antiga sabem o que significa Jhow. Agora, nem sempre essa facilidade de produção, significa algum tipo de retorno. Existe um trilhão de coisas na internet. É muito difícil mudar isso. É outro mundo. Verdade. O cara que participa do establishment ainda sai na vantagem. E isso independe de julgamentos, digamos de “qualidade”. Que são julgamentos abstratos. Mas que nós sabemos que a verdade é que a maior parte das coisas que existem por aí são merda mesmo. E que é tudo uma questão de gosto. Ou seja, mau gosto. Embora prefira acreditar que seja falta de educação e cultura mesmo. O seu amigo pode achar a sua música a coisa mais foda do mundo. Mas dificilmente, a não ser que ele seja muito ligado à arte, ele não vai andar com o seu som por aí pedindo as pessoas para ouvir. Pois a maior parte das pessoas vai para a internet ouvir, e assistir aquilo que elas já estão vendo e assistindo off-line. Eu entendo isso, é o medo da solidão. Também sinto esse medo. A internet pode ter mudado o mundo. Mas o ser humano não mudou. São poucos os que se interessam por coisas inéditas. Mas sem dúvida nada que se compare aquele tempo. Hoje em dia é muito mais fácil. Mas pensar que é só ter um trabalho na internet que terá um feedback dele é ilusão. Ou depende dá sorte mesmo. Mas tem um ou outro maluco como você que presta atenção no trabalho dos outros. E vira um puta incentivo.
JCA – Em uma entrevista, você declarou que filma seus próprios videoclipes. Como é o seu processo de produção como um todo, Delano? Desde as gravações de suas músicas, vídeos e produções literárias? E ainda: faça uma comparação desses dois períodos que são da pré-internet até este momento.
D.V. – Cara eu sou um artista de pegar e fazer. Eu sigo muito aquela tradição da cultura pop, da contracultura. É saudosismo, sim, claro. Mas no sentido da experimentação. Sinto falta de algo “mal-acabado”. A arte tem se tornado muito plástica, muito ensaiada. Todo mundo toca muito. Muita tecnologia… Boa parte dos shows que se tem por aí é chata, e previsível, é isso. Falta mais improviso. Acho que foi Nietsche que disse que o do futuro teria que ser mais inteligente, pois teria mais informação, é óbvio. Hoje se tem mais acesso. Mas se tem pouca autonomia. Pouca compreensão. Erich Fromm falou que iria chegar o dia em que os autômatos não precisariam ser vigiados por soldados. Esse dia chegou. O cara entra na internet, que é uma Biblioteca de Alexandria, e vai ver fofoca da vida de artista. Ou fica no Facebook se dizendo entediado. É isso que está acontecendo. Hoje você tem a internet, até tv a cabo dentro de favela, e a maioria não quer ouvir nada diferente. Não é todo mundo, mas é a maioria esmagadora. E isso joga a arte na mesmice. E no mercado de música pop, que vai se baixando ao nível da compreensão das pessoas, que é quase nenhum. Então fica difícil divulgar um trabalho diferenciado, que não faça parte do establishment. Mesmo que a produção seja razoável. Sei que é chato falar sobre isso, mas alguém tem que falar. Também me incomoda ter que falar sobre isso.
JCA – Se pensarmos no contexto histórico, no que o blues e até mesmo o jazz nos Estados Unidos são o que são, é porque tiveram suas origens na diáspora africana, o que resultou na cultura afro-americana; e até mesmo na Inglaterra o Ska se junta à cultura britânica apreendida por jovens de classe operária, que se identificaram com aqueles imigrantes das colônias britânicas. Você acha que a nossa afro-brasilidade também se encontra nos guetos e nos morros suburbanos, talvez instalados no DNA histórico em que sucedeu a erradicação compulsória dos recém-libertos afro-brasileiros para estes morros? O artista periférico contemporâneo talvez esteja finalmente se confrontando e buscando aí a estética fora daquela centralizada pela pólis?
D.V. – Embora eu ache estranha a evasão dos centros de macumbas das favelas em detrimento de outras igrejas, penso que a nossa cultura tem que seguir um ponto em que consiga mixar o moderno e o clássico. E que no dia 20 de novembro se comemore ao som de rap e da dança de rua, que já fazem parte da cultura negra suburbana, assim como o Mano Brown deve ser considerado um exemplo de Zumbi dos Palmares da era tecnológica. E que não se fique apenas batendo tambor. Essa molecada que está aí com tablet na mão não entende isso, e tem horror a tudo que é “velho”. Então tem que se negociar, e viver a realidade. Pois como diria João Gilberto, “Chega de Saudade!” E não ficar esperando o tempo passar para depois reconhecer que aquilo era legal, e depois ficar estudando. Nós brasileiros somos muito tradicionalistas. Muito conservadores, talvez por um ranço da intelectualidade de esquerda europeia que veio nos dizer que o bonito é que a nossa cultura seja mantida uniforme. A escola de samba evoluiu, mas o samba não evoluiu. A favela no Rio hoje é funk, forró de teclado, pagode mela cueca, e louvor. E depois vêm os outros. Samba de raiz é coisa da Lapa, e de estudante universitário. Mas todo mundo tem que ter o direito de saber quem é Mozart, quem é Shakespeare, Chico Buarque pra poder ter o direito de escolher. Mas sem ficar chato. Sem ficar bocejando na ópera. E sem se tornar uma obrigação. E sem aquele discurso de que se eu não tocasse violino, eu seria bandido. Mas tem que se ter escolha. Oportunidade. Que hoje, aparentemente, a maioria não tem. Basta ver o número de analfabetos funcional.
JCA – Saiu há pouco tempo uma matéria sobre “os intelectuais da periferia (http://farofafa.cartacapital.com.br/2013/07/30/os-intelectuais-perifericos-pedem-passagem/). Em que encontravam-se incluídos na linha de frente Mano Brown e o Hip-hop como movimento formador desses pensadores “orgânicos”, como diria um pesquisador citado na própria matéria. Como letrista, poeta e escritor, formado pela cultura Hip-hop, como você se enquadraria nesse contexto? Como de praxe este é o espaço que você poderá comentar, acrescentar ou até mesmo fazer alguma pergunta que gostaria que lhe perguntassem. É seu.
D.V. – Olha, eu me considero pertencendo a esta cultura também. Ela ajudou na minha formação. Assim como a literatura, o rap e outros estilos musicais foram extremamente importantes para a minha formação. Diferente das escolas que acabaram com a minha autoestima. Esse foi o meu caminho, e o caminho de uma porção de gente, através da música, da leitura, não para ficar rico, mas para ter uma educação privilegiada. O melhor é ter o acesso, através dos livros, ao pensamento de grandes homens. Fui educado como ser humano. Não para não sofrer, não para não errar, ou para ser eternamente feliz. Mas para parar e observar. Colocar na balança. Tentar compreender. Tentar melhorar. Agora eu levo a cultura a sério. Embora todo homem honesto seja contraditório, como diria Fellini. Sei que ainda estamos saindo de nossa condição animalesca, por isso não sou pessimista. Mas temos sempre que analisar a sociedade como um todo, temos que falar de saúde, educação, segurança, filosofia, história, psicologia, e isso demanda tempo. Precisamos de tempo! E por falar em tempo, obrigado pelo tempo daqueles que se dedicaram a ler esta entrevista.
Entrevista concedida via e-mail entre os dias 8 e 17 de agosto de 2013
[1] Milton Santos 1926-2001, geógrafo brasileiro cujas pesquisas sobre a globalização resultaram no documentário de Silvio Tendler, em 2001. Clique aqui para acessar na íntegra, e assista após esta entrevista. (N. do E.)
[2] Obra de Aluísio Azevedo. (N.E.)