De uma coisa sabemos, os povos africanos são os mais antigos da Terra. A sabedoria que deles emana, vem fundada numa autoridade de milênios de vivência, e nós somos herdeiros desse povo. Temos a responsabilidade de cultuar e perpetuar sua memória, nos prepararmos intelectualmente, pois estamos falando de nada menos que uma filosofia como outra qualquer, ainda que seja anterior ao próprio conceito etimológico da palavra amiga da sabedoria. Bem que num exercício anacrônico, qualquer um filósofo, sacerdote ou adepto das religiões de matriz africanas poderia hoje se valer das palavras do filosofo ocidental Pierre Fougeyrollas que afirmava: “Jamais foi tão grave quanto hoje o perigo de uma extinção da filosofia. Jamais foram tão grandes a necessidade de um novo ímpeto filosófico e as chances de um novo surto do pensamento filosófico.”
Essas reflexões nadam em mim desde o período que tive nos bancos da PUC as primeiras aulas sobre “educação religiosa”, em que o professor poderia apontar um caminho, ou lhe entregar a resposta pronta. Felizes aqueles que tinham os caminhos iluminados para que simplesmente passássemos… eu estava recém-iniciada e todo conteúdo teológico, ora das disciplinas religiosas, ora das disciplinas eletivas me remetiam ao meu momento religioso solitário, embora todos os discursos científicos, filosóficos e espirituais fossem conduzidos à luz do cristianismo, sempre! Mesmo quando não aparentava.
É triste a constatação de que os resquícios das teorias hegelianas, que afirmavam a falta de objetividade sólida que merecesse o status de História com H maiúsculo de Heródoto, “pai da história” — há controvérsias (assim como na medicina, astrologia…) — ainda sobrevivem mesmo nas universidades de conceito “A”. “A” de tudo menos de África. A grande dificuldade reside na ausência de disciplinas, cursos de formação inicial e continuada, materiais didáticos (que existem em todas as formas e em todas possibilidades). Paradoxalmente, o berço da civilização se sobrepõe ao berço da humanidade, a Arché grega (o princípio, o começo) sobrepôs a igbadu (o princípio, a cabaça que nos sustenta), a negação do passado científico e tecnológico dos povos africanos e a exacerbação do seu caráter “lúdico”, sustentou e sustenta todos os estereótipos vindos dessa constatação. Há ainda as que são baseadas em “lendas” bíblicas, porque, vindo da Europa, é escritura sagrada, vindo da África, é lenda, superstição.
– Pra mim, Pau que dá em Chico dá em Francisco – A necessidade do “Religare” base de todas as religiões, não faz sentido nenhum, para um ser dessa origem. Culto à Orisà (orixá) não era religião, era como diz Stuart Hall a “interligação das praticas cotidianas“, necessárias como comer, é Africano come! Então pra que religare? Para que religar-se ao que não desconecta? Quando estamos ajoelhados diante de uma árvore, não adoramos à arvore, adoramos o Deus que a criou e a divindade que nela reside, somos conduzidos pelos mitos, na minha tradição chamados de Itans,versos sagrados que resguardam o multi-universo do conhecimento da tradição Yorubá, os que nascem na hora do desespero humano, com a intenção de confortar nos momentos difíceis consolando na derrota e encorajando na luta.
Os mitos greco-romanos receberam a medalha dos fundadores e inspiradores de arquétipos culturais. A psicologia por exemplo, se utiliza da mitologia grega para caracterizar fenômenos psicológicos, complexo de Édipo, Electra, então, onde mora a diferença? Na cor do mito? Mas eles, os mitos, não se confrontam, pois a intenção deles, tanto europeia como africana, seria de abordar instintos humanos, como o poder do amor, do ciúme, da ansiedade, o conflito de gerações, violência, abandono, tristeza. Contos de homens-deuses, deuses-homens revelam nosso humano mais profundo. Porque nossos ancestrais passaram por “aquela barbárie”, o tráfico, ainda hoje vivenciamos a escassez de iniciativas oficiais em relação a memória do tráfico. Ah, você não lembra? Eu sei por isso foi contra as cotas… aquelas que deram certo. É fundamental o nosso religare… e lutamos por isso. É latente em nós, grita nos nossos cabelos, nas nossas marcas ritualísticas, na dança, no som do atabaque, na saia que roda ao som do Jongo, da capoeira, do Sire… no nosso cabelo raspado… na nossa necessidade de voltar e construir, se reconstruir, toda iniciação é uma reconstrução de uma historia perdida no tempo… na ignorância… precisamos resgatar nossas raízes para encontrarmos nossas asas e nossas historias. Lembro-me de um espetáculo, um dos mais emocionantes que assisti até hoje, intitulado “candaces”, em que um texto dizia, gritava: “As historias não são contadas quando não existem quem as contem, quando as vozes não são ouvidas, quando as vozes são caladas, quando ouvidos não conseguem escutá-las quando ouvidos não entendem, o que escutam, temos muitas historias pra contar…”
A pergunta é: Vamos conviver ou vamos continuar inventando nosso mundo paralelo? Um mundo que não se importa se você está achando meu cabelo feio, se o nome do meu filho é feio! Se minha roupa está extravagante. Estamos resignificando os nomes dos nossos filhos, estamos resignificando nosso casamento, nossas amizades, estamos nos baseando na física quântica. Vamos ouvir os conselhos de orumilá. Vamos conviver porque é uma ida sem volta. Não vamos perdoar mais! Mesmo que novamente o papa peça-nos perdão… evite a necessidade do perdão, respeite-nos, respeite nossa dignidade, nossa honra, nossa religiosidade!
Senta aí, levanta não! Vamos conversar…