A Grécia, a narrativa e a poesia
por Marcio Rufino
Acordei mais cedo que de costume. É verdade que de duas semanas pra cá fico
contando as horas para chegar terça-feira. Já tinha visto alguma
coisa do que seria a aula de hoje no site, e a voz de Caetano Veloso
cantando “Alexandre” ainda ressoava no meu ouvido. Não tinha nada pra comer
em casa e fui ao supermercado mais perto fazer meu desjejum: um joelho
de frango e um suco de manga. Andei a pé do meu bairro até o centro de
Belford Roxo pra não ficar à toa em casa até o meio-dia. Como moro na
fronteira entre dois bairros, dei a volta pelo outro bairro e comprei a
quentinha, cuja comida lembra o tempero de minha finada mãe. Devorei as
almôndegas, o macarrão, o arroz e o feijão com a farinha de aveia e linhaça
com o apetite que me é peculiar. Enfim era meio-dia.
Escovei os dentes, me arrumei e uma hora e meia de ônibus e metrô depois, já
estava na sala 3.1 do MAR, ouvindo Beá discorrer sobre a origem da cultura
grega. Imagine. A grande Hélade era periférica. Nascida entre ilhas, era
cercada por Egito, Pérsia e Assíria. O tempo faz uma história longínqua ser
quase um conto de fadas. Uma amiga me disse há algum tempo que sou
tão fissurado na cultura grega porque devo ter vivido lá em alguma vida
passada. E enquanto assisto à palestra de Beá, tento fazer minha TVP
(terapia de vida passada) particular, e busco no fundo da lembrança de
minha memória perdida algum rastro de passagem entre aquelas pinturas de
guerras e oferendas. Entre aquelas esculturas de nu masculino que tanto
impressionam. Mas Mnenósine não me ajuda nem um pouco. E o que resta não
são lembranças e sim a imaginação voando solta entre aquelas ilhas de
minotauro e centauros; aquele mar de Poseidon; aquele céu de Ícaro.
Depois foi a vez de Sandra Portugal palestrar sobre a narrativa. Mais
uma vez os deuses gregos e os orixás africanos iorubas tomaram o
centro da conversa; e eu me identifiquei com o texto que discorre
sobre a dificuldade de se narrar; de como perdemos o fio da meada. Não
só concordei como sei que é esse fato que faz uma piada ficar sem
graça, por exemplo. Quando se distribuiu os textos para apresentar,
acho que o nosso grupo foi o menos profícuo. Poderíamos ter nos doado,
nos permitido mais.
Finalmente, depois do lanche, eu e Heraldo HB partimos pra boêmia; lá
encontramos outros amigos quebradeiros e fechamos a tarde e iniciamos
a noite no Beco dos Barbeiros gritando nossos poemas no sarau
Ameopoema. Lá tive o prazer de encontrar amigos militantes de outros
movimentos poéticos como Dudu Pererê, do Ratos Di Versus, Viviane Salles,
do Poesia de Esquina. Subimos no púlpito de madeira e deixamos a
verborragia tomar conta. Isso tudo regado a muita cerveja. Tudo
acabado. Agora é voltar a contar os dias e as horas para a próxima
O Poder da Palavra
por Rogeria Reis
Sempre escutamos que “palavras têm poder”. E tem mesmo! Seja ela falada, cantada ou escrita. A arte visual também. Creio que os gregos entenderam bem isso com a poética e com a retórica.
Na Grécia, a palavra explorava sentidos, significados, trágicos ou cômicos na concepção de uma dicotomia do discurso.
Hoje, as palavras na linguagem oral ou escrita sugerem uma multiplicidade de sentidos e significados dignos de análises.
Mimesis – a palavra abrindo possibilidades para o sonho, para a fantasia ou para a mistura da ficção com a realidade;
Ou a diegesis – o que narramos ou produzimos artisticamente como retrato da realidade ou o mais próximo possível desta.
Nossos discursos, nossas narrativas, nossa arte nos identificam, nos representam?
A mimesis como discurso proferido por uma “persona”, por sua vez, pode produzir uma distorção da realidade e contribuir para a construção de um imaginário e seu poder de influência.
Quer seja pela poética ou pela retórica ou pela arte, uma realidade acaba se fundando e se definindo.
Embora o pensamento aristotélico não tenha ultrapassado os limites da poesia e da retórica, ele foi usado posteriormente para fundamentação do conceito da estética na arte.
Como afirma Lacan: “Não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso.”
Essas reflexões me causam inquietações quanto aos elementos constituintes do imaginário popular e suas influências no cotidiano do indivíduo ou de grupos.
Diante disso, refleti, ao analisar a fotografia da escultura de Zeus que nos foi apresentada em sala de aula, se essa imagem realmente representa esse deus grego. E pensei também na estética expressa visualmente de Jesus Cristo, lindo, de olhos azuis como sendo a imagem do Cristo plantada no imaginário, mas que, segundo a narrativa do profeta Isaías, Jesus não teria parecer nem formosura. Ao contrário, seria, pelas previsões do profeta (Isaías:53), um homem experimentado em dores, desprezado, e que, olhando para ele, nada veríamos.
Nessa passagem do profeta, pinço elementos tão atuais como a negação, o apagamento, a invisibilidade do outro — que como vimos são determinadas pelas relações de poder.
Escreveremos nossas histórias como em Medeia, com consciência, ou como em Édipo, inconscientes?
Como se percebe, a Universidade das Quebradas tem nos levado bem além do que os orientadores e nós mesmos imaginamos.
Eis um fragmento da passagem, mas sugiro a leitura de todo o capítulo 53, para melhor compreensão da narrativa do profeta Isaías.
“Desprezámo-lo e rejeitámo-lo. Era um homem de sofrimentos experimentado nas mais amargas provações. Voltávamos-lhe as costas e olhávamos para o outro lado ao passar perto. Era desprezado e não lhe ligávamos importância nenhuma.” (Isaías 53;3)
Jesus Cristo veio ao mundo e narrou com sua própria vida (aqui, pensando no corpo, como matéria que ocupa lugar e se desloca no tempo e no espaço e suas muitas significâncias) e discurso (verbo), a sua história.
Foi mitificado por sua trajetória de amor e respeito ao próximo, sobretudo os mais humildes, ou seja, os que não gozavam do bem e de bens na vida, os menosprezados, os oprimidos, os marginalizados, os rejeitados, os pobres, os discriminados.
Enfim… foi narrado por tantos e até hoje ainda é, e sob várias perspectivas.
Identifiquei-me com a história, ou seja, com o mito de Jesus Cristo, portanto, ELE me representa. Se me identificar de algum modo com a sua história, certamente você irá me representar também e, caso não, terá o meu mais profundo respeito.
Reafirmo na Universidade das Quebradas e nas quebradas da vida esse compromisso.
Sobre a lenda da Riqueza de Obará
por Fabio Augusto
Tem sido assim toda terça.
Muita informação e conhecimento, muitas ideias e ideais,
muitas respostas e descobrimentos…
Na última aula não foi diferente, com habilidade e magia, Sandra Portugal nos mostrou formas múltiplas de narrativas e histórias interessantes que confesso me prenderam na leitura essa semana toda.
Não só o texto de Walter Benjamin mas o próprio Nicolay Leskov, com pitadas de Tolstói e Dostoiévski, nos mostram um narrador que parece estar presente entre nós durante a leitura, mas que, na verdade, quanto mais distante ele se coloca, melhor e mais detalhadamente seu texto aparece.
Quanto à atividade em grupo, publiquei num outro post um resumo de tudo que ouvi e estudei, e vou postar de novo por aqui…
Muito mais que uma história sobre abóboras, o conto que narramos no território de ontem fala sobre várias questões importantes: Bondade, justiça, preconceito, fé, fraternidade e verdade.
Sem muito esforço, podemos adaptar essa história em nosso dia a dia onde nada parece o que é. Qualquer um pode ter essas riquezas dentro se si. Podemos também analisar o quanto é importante acreditar no que sentimos e que sempre podemos dividir o pouco que temos.
Sobre a lenda da Riqueza de Obará, descobri que eram dezesseis irmãos, Okaram, Megioko, Etaogunda, Yorossum, Oxé, Odí, Edjioenile, Ossá, Ofum, Owarin, Edjilaxebora, Ogilaban, Iká, Obetagunda, Alafia e Obará. De todos, Obará era o mais pobre, e morava em uma casa de palha na floresta, com muita simplicidade e modéstia.
Quando os irmãos foram fazer a visita anual ao babalaô, ele perguntou: “Onde estava o outro irmão?” Disseram que houve um problema e que ele não poderia comparecer, mas tinham mesmo vergonha do irmão por ser pobre. Foi quando o babalaô presenteou a cada irmão com uma lembrança simples, e após a consulta, foram todos para casa. Na volta, reclamavam sem parar. “Isso é presente que se dê? Abóboras?” .
Já era tarde e ao passar próximo da casa do irmão, eles resolveram então passar a noite lá. Chegando na casa, todos entraram e foram muito bem-recebidos. Obará pediu a esposa que preparasse comida e bebida para todos, e acabaram com toda comida da casa. Logo os irmãos foram embora sem agradecer, mas antes lhe deixaram as abóboras como presente, até porque de nada esse presente valia para os irmãos.
No almoço, a esposa de Obará falou que não havia mais nada o que comer, só as abóboras que não estavam boas, mas Obará pediu-lhe que as fizesse assim mesmo. Quando abriram as abóboras, haviam riquezas em ouro e pedras preciosas, e Obará prosperou.
O tempo passou e os irmãos de Obará ficaram na miséria, e voltaram ao babalaô para resolver a situação. Ao chegar lá, escutaram o povo saldando um príncipe em seu cavalo, que mudava de cores, e muitos servos em sua comitiva entrando na cidade. Ao olhar para o príncipe, perceberam que era seu irmão Obará, e perguntaram ao babalaô como poderia ser possível! Ele respondeu: Então… sabe aquelas abóboras que dei com tanto carinho a cada um de vocês? Dentro havia riquezas em pedras e ouro, mas a vaidade e o orgulho não vos deixaram ver, e hoje quem era o mais pobre, tornou-se o mais rico.
Os irmãos foram ao palácio de Obará para tentar recuperar as abóboras. Disseram a Obará que devolvessem as abóboras, e Obará assim o fez, mas antes esvaziou todas, e disse: “Eis aqui, meus irmãos, as abóboras que me deram para comer, agora são vocês que as comerão.”
Ao visitar o palácio de Obará, o babalaô lhe disse: “Enquanto não revelares o que tens, tu sempre terás.”
E assim se explica o motivo que quem carrega este Odú não pode revelar o que tem.
Uma vez revelado o segredo, corre se o risco de perder tudo, tal como os irmãos de Obará.
Uma vez revelado o segredo, corre se o risco de perder tudo, tal como os irmãos de Obará.
Diásporas Cíclicas
por Denise Lima
Meu bonde partiu de Angola, acorrentado!
Chegou em Pernambuco, suou na cana,
fugiu para um quilombo em Minas Gerais.
Passou fome, frio, sede, adoeceu.
Ouviu falar da princesa e da liberdade, duvidou e não errou!
Quem liberta e coloca na rua, sem roupa ou colchão?
Viu chegar outro bonde, desta vez de brancos com falas engraçadas e
suas ferramentas de campo!
Perdemos o chão, invadiram o quilombo, devastaram tudo, fundaram latifúndio.
Partimos de novo, para o Rio de Janeiro, uma nova senzala
chamada quarto de empregada, de onde fugíamos, uma vez por mês para os barracos ou cortiços! Desta vez, passamos fome de desejos.
O prato cheio, na mesa deles, não vai nos servir, sirvamos-nos de restos!
Tudo é pouco: amor, vestimenta, salário. Muitos, só os filhos, outras bocas famintas.
O tempo passa e novo sonho de liberdade nos dão, chamam-na de escola.
Mas, nossa cor deixa-nos novamente na senzala: do medo, do racismo, do bullying.
Precisamos provar que podemos,
precisamos provar que merecemos,
precisamos provar que nos importamos.
Agora, é o tempo que nos cerceia, nos pune, nos castra.
Novas tecnologias inalcançáveis, novos mundos híbridos, não nos convidaram para a globalização. Então quedemo-nos deserto, à espera de nômades!