Quebradeiros escrevem a partir da aula de Jarouche
O homem que não sorria por Monique Britto
Era uma vez um homem que não sorria pois tinha medo de não deixar os olhos bem abertos. Ele foi chamado de infeliz. Tinham pena dele, achavam-no triste, um coitado. Pensavam que ele não se divertia, não aproveitava, não vivia. De quando em quando o rechaçavam, o excluíam. Ninguém queria por perto alguém indiferente, alguém que não demonstrava alegria nem aprovação. Não tiravam fotos com ele e depois de um tempo, nem muito lhe olhavam.
Um dia, um dos poucos amigos lhe perguntou em uma visita a sua casa: O que te fez infeliz ao ponto de nunca sorrir? Ele pensou. Olhou o amigo nos olhos e disse: Eu sou feliz. O amigo não insistiu, já havia se acostumado há anos com ele, que embora triste, sempre tinha boas palavras, bons ouvidos e bons vinhos. Passaram-se anos e ele os viveu. Sem sorrir e de olhos bem abertos. Olhava nos olhos de quem o ignorava, ouvia com paciência quem o criticava, aconselhava quem o procurava. Via todos, via tudo e essa era sua fixação. No fim da vida acumulou à sua volta um número seleto de pessoas, que sem exceção, gostavam dele. Mesmo sem terem recebido dele um único sorriso. Essas pessoas sentiam-se amadas por ele, acolhidas por ele, cuidadas e protegidas por ele. Mas não sabiam bem o porquê. Não acumulou dinheiro, na verdade não tinha muito tempo para pensar nessas amenidades. Escreveu coisas. Muitas coisas. Umas que foram lidas e outras que ninguém imagina. Uma delas foi especialmente lida por seu amigo, o mesmo que em ocasião já citada, o questionara sobre a infelicidade.
O amigo um dia chegou ao portão e viu que não estava trancado. Passou o pequeno quintal e viu que não havia água nas plantas, chegou a porta da sala e percebeu que também estava aberta. Pressentiu o que tinha acontecido, mas não o que ia ver. A casa arrumada, coisas de eletricidade desligadas. Dentro do quarto, na cama, bem acomodado em seus travesseiros e lençóis o amigo sorria de olhos cerrados. E foi assim a primeira vez que todos o viram sorrir: em seu velório. E em meio a lágrimas e soluços sorriam por seu sorriso. Nesse momento o amigo leu aquela uma carta onde contava pela primeira vez o que sentia sobre sorrir. E foram docemente amargas suas palavras:
Tanto me cobraram sorrisos que resolvi falar deles. Confundo-me com tantos sorrisos. Que não sei se são vazios, ou cheios de confusões. Que não sei se são de graça ou desgraça. Que não sei se são de consciência, ou de inconscientes. Que não sei se são necessários. E por não saber, não os faço. E também não os faço pois me irrita como me fecham as vistas. Podem dizer que isto é cisma. Mas estou certo de que vi muito mais coisas do que muita gente. E se biologicamente somos iguais, ignorando as com problema de vista, não vejo outro fator que cause isso, a não ser os sorrisos. E mais grave que isso é que vendo bem, eu pude notar que grande parte dos sorrisos são sem vontade, sem alegria e sem razão. Ou seja, esses loucos cerram os olhos negligentemente, só por convenção. E também, ao me ver feliz, entendi que o sorriso é figura, representação, satisfação ao outro. E decidi não fazer relatório da minha felicidade. Sim, pois confesso ser absurdamente feliz. Tenho amigos, tive saúde, sei muitas histórias, comi boas comidas, enfim, sou feliz. Então confesso-lhes algo que não acreditarão: sorrio. Mas sorrio ao deitar para dormir, pois aí o escuro do quarto já não mais me atrai, não corro o risco de perder visões. Ao contrário, sorrio ao deitar, exatamente para ajudar-me a cerrar os olhos e poder encontrar outra vez minhas alegrias mantendo seus motivos por perto, até o novo amanhecer.
Os que estavam no velório depois da carta não sorriram, nem choraram. Pelo menos naquele dia fizeram questão de manter os olhos bem abertos.
Poesias, devaneios e desassossego por Angelo Mello da Silva
Uma busca inconstante mobiliza qualquer alma que questiona-se. As perspectivas variam conforme o sujeito, sua vontade e seus desejos junto ao que o mundo oferece. Tudo que movimenta a alma imaculada atira do seu estado de conformidade e suposto equilíbrio. O desassossego acontece, brota, surge. Então o homem movimenta-se de variadas formas, busca suprir a sua inconstância para sossegar-se novamente. A arte é uma demonstração que aconchega o indubitável do artista na forma expressiva escolhida para expor seus sentimentos, mais o dubitável interpretativo da cultura, um tanto subjetiva, que aparentemente não faz sentido. Ou seja, a arte é sentir, sentido, único, para que o mundo possa repensar suas formas e formulas um tanto preestabelecida. A narrativa poética tem um viés nato que quebra com o próprio sentido da palavra, acontecem rupturas imaginativas não esperadas, levando o homem a recriar o sentido do ser, fazer, entender e servir. A proposta de cada terça-feira na Universidade das Quebradas leva o homem a ser mais do que espera-se. Rompe, quebra e refaz-se a todo instante.
Inconstância do absurdo
Minha vontade hoje é pela inconstância!
De um movimento disforme.
Do lado inesperado do absurdo.
Da beleza inesperada do que não é concreto.
Do sentimento não vivido.
Da agonia da busca.
Da tinta fresca ainda não feita.
Do sentir antes de fazer.
Do café não solúvel, ainda como fruto.
Do amor desarmado.
Do entender antes do real.
Do fluxo verborrágico alcalino que sai da boca.
Da língua em contato com o céu de alguma boca.
Da íris trêmula pela gota d’água.
Do sorriso esgotado.
Do nervoso.
Do antes.
Do caos.
A recepção do mundo
O mundo me constrange.
Vira as costas, me sabota.
Vomita impropérios desenfreados.
Acusa-me, exclama que os acasos são minha culpa.
Diz que a imundice e a podridão alheia tem haver com a minha existência.
Vem, me consome, entra sem pedir licença, o dedo em riste.
Pode começar, eu aguento.
Fala, mas não fale baixo.
Grite, acusa-me, sem piedade, isso é para os fracos.
Sem pena, não se condoa.
Farpas, pregos, marteladas.
Sou forte, bata, mas bata com vontade, encha-me de pancadas.
Tente me modelar.
Vai, não desista, invada, deflore o meu julgo.
É, não consegue!
Pois, é, descobri uma força que nem eu sabia!
Agradeço-te mundo.
Você com sua insistência me fez muito mais forte do que eu pretendia ser.
Obrigado.
Agora posso estar aqui brincando com você, te descobrir e ser o seu dono.
Mas preste atenção!
Não serei igual a ti.
Serei carinhoso, cuidadoso e justo.
Um alerta.
Cuidado, pois usarei a justiça, e ela é difícil de ser entendida para quem foi injusto.
Mas tudo que te falo, tem como fundamento o amor.
Sem ele, seria somente a reprodução de um sonho ruim.
E no meu sonho somente a reprodução não basta.
Tem que ser, tem que viver, tem que fazer diferente!
A terra da vida
Tudo que é criativo é santo.
O espírito ressalta o humor que liberta.
O espírito se conecta, harmoniza, cria pontes.
Há uma beleza no voar, da palavra e do sêmen da terra.
Há uma santeria no conjunto do ser para o universo.
Ainda não se define o tudo, pois o tudo, ainda é desconhecido.
O ser extasiado deflora o respirar para a verdadeira vida.
Um som toca, semeia os sentidos.
O infinito se multiplica e se torna um.
O simulacro de antes, ficou no passado, como saliva grossa e insalubre.
A saliva agridoce me sufoca, se cospe, permitindo novos gostos.
Os olhos fecham e o espírito se engrandece.
A música invade e inebria o sentido da vida.
Não há mais exílio, tudo desabrocha.
Se faz voar, se conecta novamente.
Flana a todo instante, de maneira constante.
Não se define o azul, não esta mais a cima.
Se multiplica, toca, chama, mostra.
Continue a sensação, o antes não dá mais.
Tem que ser decisivo na forma de vida, na alma, no espírito.
Pois tudo flana, continue, é certo, está solto.
Não se permita ficar desolado.
Responda neste instante.
Não defina, viva, só isso, nada mais.
Estou cansado
Das misérias…
Minhas e alheias
Das falsas verdades
Do amor egoísta
De hoje e de ontem
Da mala pesada
Do sorriso embotado
Da felicidade enlatada
Do mundinho feliz
Do não conversar
Do apenas falar
Somente o meu
Nunca do nós
Das conveniências e afins
Dos confins e dos sins
Cansado é a ordem
Senta, levanta…
Rir, chora…
De se lamentar
Vai embora
Vai, vai agora
Vai, vai e não olha
Vai e não chora
Vai, vai e goza
Da vida da morte
Mas vai agora!
Por Angelo Mello
Que venham os tradutores por Juliana Barreto
A aula do mestre Mamede Jarouche potencializou ainda mais minhas especulações quanto a riqueza da produção dos pensadores árabes que ainda não foram traduzidas para o português. Destaco a produção de Avicena e Averróis, que foram uma das principais articuladoras da filosofia medieval e moderna da Europa.
A “Falsafa – Filosofia Árabe e História do pensamento” começou a se desenvolver a partir do século VIII d.C., depois das traduções de obras gregas para a língua árabe. Parte da filosofia Árabe entrou na Europa Medieval de língua latina a partir do século XII d.C. e alavancou o pensamento de boa parte da escolástica. Autores como Tomás de Aquino, Duns Scot, Rogério Bacon e outros do período tiveram acesso direto às traduções latinas de obras de filosofia e ciências árabes. Indiretamente, parte das ideias dos árabes, seja na Filosofia, seja na ciência, penetraram na Filosofia Moderna e se mantem presente nas discussões contemporâneas. O primeiro filósofo de língua árabe foi Al-Kindi, chamado de “o filósofo dos árabes” trabalhou na Casa da Sabedoria, um tipo de centro intelectual de Bagdá no século IX, onde foi elaborada a maior parte das obras de Filosofia e Ciência gregas, indianas, persas e outras. Depois dele, destaca-se Al-Farabi, o criador das ideias mais originais da filosofia em árabe, reunindo elementos do pensament de Aristóteles, Platão e Plotino, para construir um sistema orgânico que envolvesse a metafísica, a cosmologia, a psicologia, ciências naturais, lógica e ciências práticas. Outro autor importante é Ibn Sina, conhecido por nós como Avicena, que sistematizou praticamente tudo o que havia de mais importante no século XI, no que tange à filosofia e às ciências da época. Depois dele há outros, Ibn Rushd (Averróis), Al- Ghazali e Ibn Khaldun, todos inseridos no que poderíamos chamar de um período criticista da Falsafa.
A palavra Falsafa é uma transliteração pura e simples da palavra grega Philosophia. Nesse sentido, é certo que os árabes entenderam que Filosofia era aquilo que a língua grega, de maneira geral, denominava Filosofia, ainda que houvesse divergência entre os autores gregos. Al-Farabi, entretanto, diz que esse tipo de saber não teria começado com os gregos, mas com os caldeus, passado aos egípcios, destes aos gregos, dos gregos aos sírios e dos sírios aos árabes.
Fonte: Miguel Attie Filho – Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Seria riquíssimo, para os brasileiros, o acesso à produções traduzidas, até para que nossos alunos não enxergassem a história do pensamento de maneira distorcida através de um olhar eurocêntrico. Dado que boa parte da Filosofia chamada ocidental é tributária da Filosofia árabe, então, estudar a Falsafa não é estudar a Filosofia de um outro, mas é estudar o nosso próprio pensamento. O mestre Mamede Jarouche enquanto respondia minha pergunta quanto ao que de fato perdemos pela falta de traduções da produção dos pensadores árabes, deixou evidente que existe de fato carência de tradutores, mas suponho que havendo demanda expande-se o mercado para que novos tradutores surjam. O pensamento deve ser compreendido em sua inteireza e acessível em todos os idiomas por ser patrimônio da civilização humana. Então, que venham os tradutores!
A história triste da contadora de histórias sem pé nem cabeça e sem começo nem fim
por Rogéria Reis
Aspiro o ar fresco da manhã,
o que me é agradável fazer todos os dias.
Da janela, contemplo o sol que brilha, tanto, tanto…
Há nuvens claras feito algodão doce no céu.
Que encanto!
De súbito, as crianças me chamam,
me viro e vejo bagunça por todo o canto.
Melhor assim, vê-las com saúde, farreando,
e brinquedos pelo chão sempre espalhando.
Querem histórias, brincadeiras,
reviram-se em cambalhotas e danças,
que faceiras!
Ah, se o mundo fosse um mundo de crianças…
Tudo seria esperança, expressão de renovações verdadeiras.
Por um momento, penso:
Hávia um rei em seu aposento
que histórias sem pé nem cabeça,
sem fim nem começo,
gostava sempre de escutar.
Dia após dia acorda e ainda sonolento,
espera Sherazade Imaculada,
seus contos sem ponto final, contar.
Um dia porém, algo triste aconteceu:
Finalizou-se as histórias no palácio!
Ninguém mais as leu.
Sherazade Imaculada,
aquela que para sobreviver,
prolongava sempre seus sonhos e contos, não eu!
Cansada e farta de dias,
fechou seus olhos e serena,
abraçada ao seu velho
e amigo livro, morreu.