Na noite de ontem (24/04), recebi um artigo de Veja.com assinado por Felipe Moura Brasil. O colunista, sem pesquisa consistente, sem entrevistados ou fontes, afirma que DG teria “envolvimento com o tráfico. Insatisfeito, decidi escrever uma carta de repúdio, que já foi enviada ao autor do artigo e à redação de Veja.com. Agora, compartilho com você, para que compreenda a situação.
À
Felipe Moura Brasil e Veja.com,
Felipe Moura Brasil, você já entrou ou morou numa favela? Da maneira que interpreta as gírias faladas em territórios populares, me parece que você morou a vida inteira na favela. Oh, wait!
Antes de introduzir-lhe à uma cartilha básica sobre favelas, gostaria de deixar claro que repudio – com todas as forças – o seu fuckin artigo (http://abr.ai/1rqfFn8) publicado em sua coluna medíocre no site da Veja.
INTRODUÇÃO
Tenho 25 anos e fui criado numa favela, ali, no Complexo do Caju, de onde saí aos 13 de idade. Nunca morei fora de uma favela ou periferia e posso garantir que, se a favela fosse a academia, eu teria Ph.D há muito tempo. Ao contrário de vossa senhoria, que mostra total despreparo para discorrer sobre o assuntos ligados a territórios populares urbanos.
Cresci vendo a polícia assassinar trabalhadores só porque chegavam tarde do trabalho. Vi alguns dos filhos desses trabalhadores entrando para o tráfico como forma de “fazer justiça”, indo atrás e matando policiais. Vi traficantes matando outros traficantes. Vi jovens levando tapa na cara e sendo chamados de bichos, animais. Os agressores? Policiais. Os agredidos? Estudantes. A ocasião? Volta da escola.
Amigos próximos, da escola e/ou da rua, migraram para o tráfico. Na época, não deixaram de ser queridos, nem deixaram de me querer bem, eu acredito. Infelizmente, foram para o lado equivocado, na busca por direitos e melhores condições. Eu preferia estudar e não me meter em “tretas”.
Hoje em dia, a maioria deles está morta ou presa. Confesso que fico muito triste com isso. Sinceramente, fico “boladão” em saber que “os amigos” perderam as suas vidas em vão, de maneira trágica. Porém, essa proximidade não me levou ao mundo do crime. Nunca.
Não uso drogas. Não sou assaltante. Não sou sequestrador. Não sou assassino. Sou artista. Sou jornalista. Sou rapper, ou melhor, “rappórter”. Sou pai de família. E sabe o que mais? Sou favelado e honesto, tenha eu tido amigos que foram para o tráfico, ou não.
DG
Vamos pular para a parte que mais interessa neste post/carta: o DG.
Antes que você me questione sobre eu o conhecer – o DG – ou não, antecipo a resposta, e digo que sim. Como citei acima, sou jornalista. Trabalhei como pesquisador do programa Esquenta! por dezessete meses e conheci o DG. Não éramos amigos, mas éramos colegas de trabalho e, eventualmente, “trocávamos ideias”.
O DG que conheci era um jovem íntegro, trabalhador, guerreiro e determinado a alcançar o estrelato como artista. Rapaz honesto. Filho. Pai. Isso sem citar a sua simpatia e irreverência durante as gravações e encontros do programa.
DG fazia parte da geração de artistas de origem popular que tirou o brilho nos olhos que os “menó” tinham pelo poder dos traficantes. Agora, os “menó” sabem que dá para ser favelado e vencer na vida honestamente, sem precisar largar a escola e sem pegar um fuzil. Você também devia saber disso, mas passar anos na PUC não te forma para vida, nem ensinam valores socioculturais. Sorry.
SOBRE GÍRIAS FAVELADAS
Vou me referir a você, citando um dos principais cases publicitários em circulação na mídia: sabe de nada, inocente!
Abaixo, algumas das suas “transliterações” e meus devidos comentários e refutações:
– “PPG” é a dita “comunidade” Pavão, Pavãozinho e Galo.
Não entendi as aspas na palavra comunidade. Apenas.
– “Bicos” são fuzis de uso restrito das forças armadas, de grosso calibre (7,62mm e 556mm) e altíssima letalidade, como COLT AR 15, M-16, AK-47, G3 e outros.
Bicos, inocente, tem significados divergentes, dependendo da favela ou região do Brasil, por exemplo: na periferia de São Paulo e para rappers e adeptos do hip hop, “bico” pode significar FOFOQUEIRO, FUXIQUEIRO, VACILÃO, FALADOR. Em alguns lugares, “BICO” pode significar fogos de artifício 12×8. E quando “BICO” vem a ter relação com arma de fogo, significa qualquer arma de cano longo. Errou de novo. Outra coisa, militar tem salva de tiros ao ser sepultado. Com traficante é a mesma coisa. Se você soubesse o mínimo sobre favela, entenderia que isso é óbvio e que todos já esperam por isso. Felipe, e daí que o DG, na sua pobre suposição, anunciou isso?
– “Os amigos” são os integrantes das quadrilhas que traficam drogas, cometem homicídios, sequestros, roubos e crimes variados.
Rindo alto. Kkkkkk! Cara, nem preciso divagar nesse comentário. AMIGO em qualquer favela, significa AMIGO. Não há nenhum significado oculto ou melindroso por trás da palavra. Você deu mole novamente.
– “Fazer barulho” é efetuar centenas de disparos, aterrorizando a população ordeira.
Onde você estudou linguística? “FAZER BARULHO” é fazer barulho em qualquer lugar. Isso não possui nenhuma relação direta com disparos de armas de fogo. Palmas fazem barulho. Fogos de artifício fazem barulho. Festas fazem barulho. Carros fazem barulho. E tiros, óbvio, também fazem barulho.
– “Cheio de ódio na veia” eu preciso explicar? Não é decerto o sentimento lindo de “miguxos” que querem obedecer a lei naquela noite e nos dias (meses e anos…) seguintes.
Você fica feliz e amável quando uma pessoa de quem gosta é assassinada? Ou morta em acidente? Não importa se a pessoa transgride ou não a lei. Tu acha que a mãe dele ficou feliz? Ficou com ódio mesmo. Morrer de maneira trágica após escolher o tráfico como meio de vida, deixa a mãe do cara cheia de ódio na veia. Que dirá amigos!
Não sei em que república você vive. Se na República da Praça São Salvador, se na República da Delfim Moreira, ou República da Lagoa Rodrigo de Freitas. Não importa! A cidade, o estado, e o país, vão bem além.
Vou deixar mais algumas gírias e seus significados nos territórios populares, sobretudo na linguagem jovem. Aí, vá e não peques mais. Não cometa mais essas gafes linguísticas que cometeu no seu artigo. Para o seu próprio bem profissional. Esta mesma carta está sendo enviada à Veja e outros veículos de comunicação. “Parcêro”, saiba que posso dar consultoria sobre pesquisa em territórios populares. #FicaaDica.
ABECEDÁRIO DAS GÍRIAS DE TERRITÓRIOS POPULARES
BONDE – galera, qualquer grupo com três ou mais indivíduos, grupo de funk, grupo de dançarinos de passinho, etc.
COMETER UM CRIME – essa é bem atual e usada por adolescentes, significando que alguém vai namorar escondido dos pais.
MANO – irmão, amigo, parceiro, camarada, às vezes usado para apontar qualquer indivíduo do sexo masculino (ex. aquele mano ali de boné vermelho).
TRETA – confusão, briga, tumulto, relacionamento amoroso indefinido, desentendimento e afins.
PAPO RETO – ser sincero em uma afirmação, falar a verdade, dizer algo sem divagações, sem arrodeios.
Ah, quer saber? Sobe a favela, faça uma pesquisa e aprenda você mesmo. As gírias supracitadas podem até ter outros significados, dependendo do território popular onde são faladas, mas não têm relação com o crime organizado, como dizem os incautos aos quatro ventos.
Falo gírias. Sou do tipo que fala MERMO no lugar de “mesmo”. Fico BOLADO quando qualquer pessoa morre assassinada, mesmo que seja um traficante, mesmo que seja um policial, mesmo que seja um desconhecido. Gosto de andar em BONDE com meus MANOS e procuro não me envolver em TRETAS. PAPO RETO, adoro FAZER BARULHO, principalmente quando estou com o microfone na mão, em cima de um palco. OS BICO ficam cheios de RECALQUE, mas, fazer o quê? Minha arte é O PODER.
Nós – a periferia – somos POTÊNCIA. Somos intelectuais. Somos produtores de cultura. Somos honestos e trabalhadores, mesmo que alguém dentro de uma fuckin cobertura diga o contrário.
Boladão e decepcionado,
Petter MC
rapper, jornalista, pesquisador, produtor, social media, favelado.
Foto: Pēteris / Fonte: Wikipédia