Coração Preso – Na Cômoda da incomodada vida

Conta a história de uma menina e toda a sua trajetória na favela; ela registra em uma cômoda da memória todas as informações vividas e já na maturidade, abre suas gavetas para revelar o que viu, ouviu, percebeu, sentiu, sofreu, se alegrou, tudo o que viveu.

Usa da linguagem poética para falar da relação de poder, da pobreza, dos reflexos da época da ditadura com as transferências das favelas da zona sul para as diversas partes do Rio de Janeiro, focando na Cidade de Deus.

É um livro que apresenta nesta memória a cultura local, os vínculos com os vizinhos, os ajustes para sobreviver.

Registra as fuligens do incêndio da Praia do Pinto. É um livro de uma memória sobrevivente à desigualdade social;

Vamos à arrumação destas gavetas?

A ideia me persegue. Não que eu tenha algo de misterioso para revelar; ela me persegue porque sou parte dela. Sou construção de pensamentos, sou revelação do meu próprio segredo. Modifico, a cada segundo, a constante passeata de pensamentos que me invadem.

Fui buscar, no armário quebrado da minha meninice, dentro da minha lembrança, parte do diário que me esqueci de escrever por não ter tido, na família, o curioso olhar alfabetizado dos pais. Não que a vontade de estar neste mundo das letras não fosse o maior desejo dos meus pais. A limitação imposta pela falta de hábitos e normalização desta ação, porém, feriam a vaidade do homem e aniquilava os argumentos da mulher. Ler e escrever eram coisas para filho do patrão.

Fecho esta gaveta. Este assunto se mistura em outras. Preciso abrir a da lembrança da arquitetura instalada na memória. Segue a história…

Morava no final do parque, na casa colada na Praia do Pinto. A minha casa pertencia a ambas as comunidades. Quando foi dada a ordem de mudança, houve retardo por conta de alguns moradores e risco para todos. Antes, havia sido feito um planejamento de remoção das favelas da zona sul e montada toda uma logística nesta transferência. Esqueceram de trabalhar os vínculos dos moradores com o contexto, e houve resistência. E a falta de paciência de algumas autoridades que resolveram incendiar a favela e obrigar a saída dos moradores resistentes? A escolha foi o fogo. E por que o fogo?

As pessoas que incomodavam, no passado, eram chamadas de bruxos, e eram queimadas. Acreditava-se que o fogo destruía tudo sem deixar vestígios ou pedaços para reconstruir.

Será que pensavam que, se o fogo nos matasse, a pobreza seria passado? Ledo engano da ignorância do poder, o fogo é o símbolo da justiça e não do fim.

Decerto, Xangô atuou mandando seus guerreiros e freou esta ação, segurando estas mãos. O destino do poder não sabia que, mesmo junto aos porcos vivem anjos; que os anjos segredam no ouvido das vigilantes salamandras reinantes, nas chamas ardentes, que voam na direção de vidas e as avisa que é hora de partir; daí,  possibilitam aos moradores uma evacuação sem mais delongas.

Estou viva! Tão menina, escutei esta versão e, com uma navalha escondida, registrei no meu coração.

Não quis sujar os meus dedos com a poeira produzida pela fuligem da queimada, com o incêndio criminoso, planejado da favela da Praia do Pinto e produzido na cômoda da minha memória.

Como era esta Praia do Pinto? Na realidade, havia duas comunidades distintas e aparentemente separadas por um muro que tinha começo, mas não tinha fim, tornando fácil o acesso de um lado ao outro apenas com um grito ou com os pés.

Os barracos eram de madeira, sem saneamento básico e sem água. Esta era pega em barril, que girava preso a vergalhões, e o armazenamento era feito em uma improvisada caixa d’água feita de metal. A distância para se adquirir o líquido vital era tal em comparação a necessidade[V1] de sua utilização. Tinha-se de andar de qualquer ponto da favela até a CIT, onde funcionava a Comlurb, próximo ao Clube de Regatas do Flamengo.

Os largos tinham nomes sugestivos, como: largo da Amizade, largo da Boa Vizinhança. O respeito, o apoio, a solidariedade, naturalmente, resistiam ao cheiro de esgoto que corria a céu aberto. Às vezes, ornado com um feto, no meio, as fezes, como se a vida só enxergasse os polos opostos, qualificando-os diante da[V2] sua fragilidade de defesa, sem, de fato, pertencerem ao centro de um colar social, sabendo que este colar já tem o seu papel determinado de linha, tão importante, mas escondida pelo brilho das pedras. O que seriam das pedras sem o apoio na sustentação que lhe dá a forma de colar?

Por Valéria Barbosa

sobre o livro de mesmo nome publicado este ano.


[V1]Ok?

[V2]Embora usada com freqüência, não existe em português a expressão “frente a”.