Sou Charles Siqueira, coordenador de projetos sociais e Conselheiro da Universidade das Quebradas. Tenho 43 anos, sou pernambucano com metade da vida no Rio e sempre acreditei que minha ligação com o mundo se daria através da instância artística (fui dançarino profissional por muitos anos), até chegar ao morro dos Prazeres e descobrir que transformar a realidade social podia ser a mais elaborada das artes. Com desafios mais complexos do que os de uma notação coreográfica.
Iniciei meu trabalho como dançarino e até ali era fácil explicar: queria abrir portas para a autorrealização daquelas então crianças pela experimentação estética. Acredito que algumas sensações e experiências só podem ser acessadas através da dimensão artística.
Não queria descobrir talentos, mas conectar indivíduos consigo, com seu corpo e as demais junções que ele pudesse fazer, inclusive elaborar um espaço de igualdade entre eles. Daí a necessidade de um grupo e não simples aulas de dança, a primeira decisão que desnudou um mundo de possibilidades quando me dei conta que eu queria impactar a vida daqueles jovens num momento muito delicado: o início da adolescência.
Não conseguiria isso sozinho e não sabia nem como explicar isso pra alguém: não sou padre, não carrego nenhuma culpa a expiar, não estou buscando lugar no céu, não quero ser “professor”. Como explicar para alguém o meu missionarismo?
Pensei: Tenho um problema: como afetar a vida de jovens que estão claramente numa situação de desvantagem perante outros da sociedade? Estão do lado da minha casa, estão entrando fundo no meu coração. O que eu posso fazer?
Percebi a questão fundamental: eu estava com vontade e isso me impulsionava além dos medos e do desconhecimento daquela realidade com propriedade. Eu era o cara certo no lugar certo. E pensando aquelas questões, com afeto.
Mas veio logo a minha pequena dimensão diante de um problema que era anterior à minha própria existência e outra percepção fundamental: não conseguiria sozinho.
Não tinha (nem tenho) patrocínios, tinha vergonha de ser confundido com um espertalhão “classe média” querendo empregar-se com a pobreza alheia e tenho uma ambição enorme de fazer a diferença. Como avançar?
Daí a idéia de ING. Mais uma vez pensei: não devo estar sozinho nessa vontade de querer afirmar uma ação positiva e transformadora através da ação real. Com certeza tem gente que não está a fim de dedicar seu tempo a falar mal do prefeito, presidente, Deus ou seja lá quem for mais que tão longe esteja dos problemas que nos afetam na esquina. Tem gente querendo agir.
Dei início a uma jornada quixotesca: superar meus medos e preconceitos, dominar os aspectos mais delicados da realidade da vida nas favelas e propor transformações de dentro. Pertencer àquele lugar, não apenas simbolicamente (pela via da intenção), mas pela presença concreta naquele cotidiano.
Chamei uma infinidade de pessoas e tornei-me o “chato”: tudo girava em torno do morro dos Prazeres. Consegui levar pessoas para me ajudar e tive minha primeira frustração: voluntariado no Brasil é pensado como boa-ação, não como compromisso sério e disciplinado. Age-se assim: se tenho tempo vou; se hoje não deu, tudo bem: já faço minha parte.
Com isso reforçava-se muitas vezes o próprio abandono a que estavam sujeitas aquelas pessoas. Se o que eu propunha era criar vínculos e através do afeto “afetar” as pessoas (de ambos os lados), o voluntariado não estava dando certo e eu entendia isso: aquelas pessoas generosas não carregavam força de desejo suficiente para enfrentar a pobreza extrema (e a dor que isso causa) ou a realidade diária de tiros, armas e gente desiludida.
Mas não queria virar uma ONG e contratar profissionais remunerados. A transformação que queria era de dupla via e não aconteceria se não fossem abertos espaços internos na racionalidade e nas impressões emocionais dos envolvidos. Nenhuma noção ideológica contra o dinheiro, mas o profissionalismo que queria ver ali era possível de ser obtido de maneira mais duradoura, além de um contrato de trabalho. Era um desafio de (e para) a vida.
Estudei Filosofia na UERJ e UFRJ, adoro conceitos e fui desenvolvendo um, o Indivíduo Não Governamental: um nível acima do simples voluntariado, alguns degraus abaixo da institucionalização externa ao indivíduo em que as ONGs se desenvolvem.
Era a partir daquela noção que iríamos operar as transformações que necessitávamos naquele momento e no futuro.
O ING não é uma crítica a governos, mas um modo de se entender um compromisso: esteja inteiro, perteça àquele contexto, mesmo que sua disponibilidade seja por um dia. Vários desses INGs foram inclusive membros de instituições governamentais.
Ele basicamente é: alguém que quer, de fato, realizar uma transformação positiva para algum aspecto negativo de nossa sociedade.
O caminho básico para um ING:
Definir um problema | Encarar o desafio | Enfrentar a frustração | Estar inteiro | Curtir o resultado
(é preciso ter prazer no que faz)
De 2002 para cá, alguns exemplos desses INGs vem ajudando a transformar a realidade de centenas de jovens no morro dos Prazeres e arredores fazendo surgir coletivos como a Galera.com (núcleo de produção audiovisual premiado dentro e fora do Brasil), o grupo Dança pra Galera (destaque na Educação do Rio em 2003 e 2004), o Núcleo de Educação e Formação Humana (envolvendo uma biblioteca, horta e artes, tudo integrado) e o Prazeres Tour, uma iniciativa de geração de renda aproveitando o potencial turístico da área.
Espero que esse texto possa ter trazido inspiração para o grupo e terei o maior prazer em dar continuidade a essa conversa, basta entrar em contato com a Universidade das Quebradas, diretamente no meu e-mail: coletivogalera@gmail.com ou telefonar para 9366-0821.