Todas as vezes que estive em Lisboa, vim a passeio e era recebida em casas de amigos brasileiros. Continuava a conviver, portanto, muito mais tempo com brasileiros do que com portugueses. Nesta temporada, quando estamos, eu e Sílvia, a morar nessa “velha cidade de encanto e beleza”, como diz o fado “Lisboa antiga” de José Galhardo/Amadeu do Vale/Raul Portela, que todo brasileiro conhece, experimentamos o inverso.
No livro Casas contadas da escritora e jornalista portuguesa Leonor Xavier, de quem nos tornamos amigas, ela diz que uma das coisas que ganhou ao morar no Brasil, foi um outro sentido de família, diferente daquele que nos é dado pelos laços consanguíneos. Eu tomo para mim o espírito das suas palavras para dizer que nós também construimos novas famílias em Portugal, não somente em Lisboa.
A nossa experiência nos leva a reconhecer a abertura, a generosidade e o respeito com que fomos acolhidas pelos novos “amigos de infância” portugueses. Talvez por isso muitas vezes me invade uma sensação de ter nascido, ou a de que vivo aqui há séculos. E me dou conta de que este sentimento também vem arrastado por aquilo que há de português em mim ou nos meus conterrâneos brasileiros, principalmente no nordeste. Às vezes estou distraída num sítio (lugar) qualquer e tomo um susto: parece que estou a escutar meus parentes do cariri a falar. Quantas vezes encontrei minha avó na rua, um primo, um tio…
Por falar em tio, lembro que alguns entre os meus parentes do cariri falavam “oiço”, o que na cidade grande era considerado errado. Esse “erro” estava carregado de desprezo, como se o falante fosse um completo ignorante da língua. E no entanto “oiço” é a forma portuguesa de dizer “ouço”. Oiço “oiço” todos os dias. Poderia contar aqui milhões de outros exemplos. Esta é a diferença que sinto ao morar e conviver muito mais com os nativos. A navegante agora sou eu mesma e o oceano é a língua. Estou guardando tesouros que levarei para nós.
O sotaque, ou pronúncia, são tão diferentes que às vezes não entendemos bem quando falam ligeiro. Querida é krida. Piscina é pichina, descer é decher. Um dia eu perguntei a uma moça, onde ela tinha nascido. Ela disse: “Eu nachi na … E eu: Na china? Sílvia me cutucou, depois rimos muito. Ela estava a dizer: Eu nachi na Madeira (Ilha da Madeira). A letra L não é pronunciada como se fora um U, como falamos na maioria dos estados do Brasil. Aqui, tem-se que dobrar a língua para dizer PortugaL, meL, fieL; coral, nataL, cordel… e assim por diante.
As formas de tratamento: você? nunca. Não é de bom tom. Quando sabem que é brasileiro falando, não levam a mal, porque estão acostumados a ouvir nas novelas. Todos acompanham as novelas brasileiras: dos velhos às crianças. O tu somente com os mais íntimos. Aí, como fica? Eles falam com a gente na terceira pessoa, quando não dizem senhor ou senhora. Perguntam-me na cara: “A Numa quer isto?”, “A Numa vai para onde?”. Quando Ângela Carneiro morava aqui tivemos o privilégio de tê-la como vizinha e não deu outra: virou quebradeira. Pois, ela nos contou que assim que chegou em Lisboa e começou a frequentar a Universidade, ficava procurando pessoas em volta para saber com quem eles falavam, pois diziam: “A Ângela isso”, “a Ângela aquilo”, “a Ângela aquil’ outro”. E era com ela mesma. Pois eu acho isso muito giro. Sabem o que é giro? Perguntem a Ângela.
Peço licença,
Adeus!
Numa Ciro
Outra coisa: Quando algo é bonito, bacana, muito interessante, eles dizem que é giro ou gira.
Sim, os africanos: bairros sociais apinhados de caboverdianos, moçambicanos, angolanos e etc. Muitos falam crioulo ou as outras línguas d’ África. Pelas ruas aquelas mulheres com roupas coloridas, cabelos nos mais variados trançados, os homens linnndos, as crianças encantadoras! a falarem suas línguas. e quando os escuto falando português, é aí que identifico quem nos ensinou a abrir a boca para falar as vogais tão esplendorosas.