Desde muito cedo, quando ainda criança ouço falar da ditadura. Essa memória que me foi transmitida e repassada por conversas a boca miúda, num tom de voz baixa e preocupada ou até no silenciamento delas. Isso sempre me pareceu estranho e não entendia bem as razões das vozes e olhares distorcidos. Os anos passaram e hoje, vivendo numa pseudo-democracia, onde as informações começam a ser retiradas “dos porões da ditadura” sentimos um peso que muitos sentiram de outras formas e que nunca puderam nos transmitir, pois suas vozes e ações foram caladas. Sentimos o peso de uma responsabilidade que se não é nossa de quem será? Uma vontade e desejo de mudar, de transformar a maneira como as coisas são pensadas e feitas neste país. Manifestações, greves, repúdios, textos, vídeos denunciam crimes, a polícia, políticos, religião, o estado, enfim, um mar de ações impróprias a vida de qualquer cidadão, que quer apenas ter garantido o direito a dignidade, dentro de normas onde todos possam acessar a verdade e a realidade das coisas de forma honesta e coerente com a vida da sociedade moderna. Mas no Brasil isso é mais difícil, temos constantemente que assistir as notícias do dia, e mais uma vez ver uma mulher sendo assassinada por oficiais, servidores do estado, que estavam lá para trazer segurança e levar de volta a tranquilidade aos residentes de uma comunidade. Impossível não se comover e não se indignar com a indignidade de seres humanos tratando outros seres humanos como uma pedaço de carne morta, sem vida … como lixo ou dejeto. A vontade realmente é de pular da cadeira e de partir para o confronto, mas como? Sabendo-se de antemão que todo o Estado e nós mesmos estamos envolvido com a conformidade e responsabilidade das coisas. De tão aberrante e natural é a postura dos nossos governantes e de nós mesmos, parece-me que estamos todos em estado de choque permanente e não sentimos mais a dor do outro como deveríamos. Não mais nos importamos, já que não é com um filho ou com a gente mesmo. Então olhamos isso tudo, lemos nas notícias blá, blá, blá e no outro dia a vida continua e aquele ultraje se transforma em números, em estatísticas e isso basta. Vamos seguindo assim, deixando que ONGs, Fundações e Institutos de Pesquisa lidem com estes números, enquanto a violência do Estado não toca suas garras em nossos bens, familiares e empregos. Porque se incomodar por um outro que não vemos e que não corresponde à nossa realidade? A única diferença dos anos de ferro, do Brasil da ditadura, para agora, é que hoje podemos falar mais abertamente sobre os casos de tortura, crimes e sumiços na calada da noite e do dia. Mas, o pior é quando falamos da semelhança, ou seja, que continuamos plácidos, aguardando o dia onde o Brasil amanheça curado, milagrosamente, das mazelas do seu caráter.
Carlo Alexandre é quebradeiro da 4a edição da UQ
Foto: Passeata dos cem mil, brasilescola.com