Hoje eu saí de casa pra ver se conseguia um lugar pra morar aqui no Rio, e estava decidido a ir para Santa Tereza, quando vi a multidão de peregrinos que seguiam em direção oposta, e não resisti, me infiltrei nela. Fui andando entre as pessoas e pensando no quanto aquela gente toda tinha andado para estar ali, naquele momento. Via gente de todas as idades, de várias línguas, com inúmeras bandeiras, era tudo muito colorido e alegre, e minha tristeza foi sendo diluída naquele alvoroço todo de palmas, risos e gente cansada, mas feliz.
Nas calçadas, os ambulantes tentavam negociar a fé, a coragem e a devoção, representados numa bandeira, num terço, ou em uma imagem do papa. Era um mundo frenético de pessoas que certamente eu nunca mais iria ver. Me deixei levar naquele mar de gente e cheguei a Copacabana. Lá o que eu pensava ser um mar, se transformou num oceano centena de vezes maior. Era bonito e acolhedor, ao mesmo tempo, eu me sentia estranho, como um peixe que não reconhece os seus. Eu, que na adolescência cantava em igreja e não perdia uma missa, estava ali perdido, engolido por uma fé que movia velhos e jovens, adolescentes com as faces rosadas e pele branca, sardenta, e outras morenas, amareladas e também negras e pardas. Mas o que mais me chamava a atenção eram as diferentes vozes, os sotaques e o brilho nos olhos pela vontade de ver o papa. Todos queriam vê-lo. Chorei um pouco, porque parecia que ali eu era o único sem propósito.
Resolvi voltar pra casa e, quando eu já estava na avenida Princesa Isabel, foi que uma outra voz me chamou a atenção, e essa era dirigida a mim.
– Moço o senhor pode me ajudar?
Ele era um garotinho magro, de camiseta cor de vinho e bermuda estampada. Segurava numa das mãos uma sacola cheia de copos fechados de suco, e com a outra, tentava arrastar uma sacola bem maior, branca, onde havia várias caixas com o kit de comida para os peregrinos.
Eu meio surpreso, perguntei:
– Te ajudar a fazer o que menino?
Ele me respondeu com a maior naturalidade, rindo com uma boca grande cheia de dentes mal-enfileirados:
– Pô, o senhor tá indo pra lá e eu também, então o senhor poderia bem me ajudar a levar essa caixa, que é mais pesada do que eu, pra lá? Pode? É que infelizmente eu não tô conseguindo e tamo indo na mesma direção.
Ele falava e ria ao mesmo tempo, e me pediu com tanta naturalidade, com tanta segurança e alegria de ter a caixa, que nem pensei direito. Fui pego de surpresa e quando me vi passava entre as pessoas com uma caixa enorme, tentando achar um caminho livre para descer pelo túnel antes do Rio Sul. E foi andando com o Wesley, (esse era o nome dele), que eu descobri que ele tinha dois irmãos menores, que morava na Pavuna, e que estava ali porque o pai era flanelinha e trabalhava em Copacabana, e que ele havia acordado e tinha ido até lá tentar encontrar o pai:
– Eu vim se encontrar com meu pai, mas como não tem carro, ele não veio. Aí eu fui pedindo as coisas pros peregrino e eles me deram tanta coisa que eu achei essa caixa e essa sacola na rua, e coloquei tudo dentro. Tá cheio de comida aí, novinha.
A carinha feliz do Wesley só não era maior que a sua determinação de levar a caixa de Copacabana a Pavuna, se preciso, a pé. E foi quando ele me contou com tanta segurança o que ele ainda tinha que fazer pra chegar em casa, que eu entendi o que eu havia ido fazer no meio daquela multidão. Deus, ou o que quer que seja essa força que nos rege, havia me tirado de casa, me desviado do caminho e me feito andar perdido naquele mar de gente só pra carregar a caixa pesada do Wesley. Ele era um garoto aparentemente comum, mas usava tão bem a confiança que tinha, que se ele me pedisse, eu iria a pé até a Pavuna com ele. E mais uma vez, ouvindo Wesley falar, comecei a perceber que, como ele, era preciso ter confiança na minha vida. E isso foi uma revelação pra mim. Eu tentava esconder o choro enquanto ele ria, me contando que ainda bem que tinha me achado e que eu era muito bacana em carregar a caixa. Mas ele me agradecia não com inferioridade, mas com alegria sincera. Ele mesmo me disse:
– Eu sempre peço pra alguém maior me ajudar, e sempre dá certo.
Bom, quem me conhece já sabe que nessa hora eu já estava chorando e rindo ao mesmo tempo. Wesley tinha me dado uma grande lição de determinação, alegria, vontade, foco e, principalmente, confiança em alguém maior.
Comecei a me soltar na medida em que o peso da caixa aumentava, e quando chegamos no ponto de ônibus, antes do viaduto, já éramos amigos, e eu estava ensopado de suor e alegria. Entramos no ônibus e Wesley passou pela porta de traz com a mesma desenvoltura que me pediu pra carregar a caixa pesada. Sentamos juntos, como dois meninos que ganharam uma batalha. Desci na Cinelândia com um nó na garganta ainda, mas bem mais leve e confiante. Da janela do ônibus, Wesley ria e me acenava. Ele com sua carinha fina e boca grande, sua caixa pesada demais pra ser carregada e sua fé e confiança muito maiores do que as minhas.
Contei essa história aqui, ainda emocionado. Um menino sai de um mar de gente pra me ensinar e me lembrar que nenhum peso é grande demais quando a gente pede pra Alguém Maior nos ajudar a carregar. Um grande abraço Wesley, e se eu nunca mais lhe encontrar, fica aqui o meu muito obrigado. Eu carreguei suas coisas e você me libertou das minhas. Um abraço do Marco.
Marco Andrade é quebradeiro da 3a edição da UQ
Fonte da imagem: Último Segundo (Facebook)