Depois de tantos anos, aproximadamente 30, subi a Rocinha novamente. Cheguei pela estrada Lagoa-Barra, caminhei pela via Ápia, quebrei à direita na estrada da Gávea, cumprimentei os policiais da UPP, falei com o pessoal do comércio, pujante e vivo como nunca, vi os jovens com seu uniforme da escola descendo ou subindo, apontei direto para a Biblioteca Parque, um monumento de arte e cultura no coração da comunidade.
Morei atribulado na rua 2 durante boa parte do ano de 1986. Meu objetivo agora é: cumprir o compromisso de aula na Universidade das Quebradas. Fui falar sobre os marginais do Romantismo brasileiro, aqueles que foram expulsos do Cânone, mas que, com energia super-heroica forçaram, pela excelência do seu traço, a arrebentação das muralhas: o baiano Luís Gama (vendido como escravo pelo próprio pai); Sousândrade (o errante poeta que peitou com frio e ferro a velha Wall Street, no drama com Tio Sam) e Qorpo Santo (o visionário poeta e dramaturgo, de escrita desafiadora). Toda Revolução é Romântica e os fundadores do Cordel brasileiro não estiveram atrás. Senti-me em casa e retornarei.
Para começar a aula, Aderaldo propôs traçar um linha no tempo para contar como o Romantismo naufragou nas águas do Cordel. E perguntou: “Alteridade, quem sabe explicar esta palavra? Não vale sinônimos, não existe sinônimo, no máximo palavras correspondentes. O professor explicou que alter é latim, e o sufixo idade é a condição. Ele afirmou que o português é a língua mais periférica das descendentes do latim. Nasceu nas tabernas, nos cabarés, nos puteiros.” Depois concluiu: “quando o cara está bêbado, ele está alter/ado, quer dizer é um outro”.
Mas Aderaldo foi logo avisando: “Falar é para todos. Escrever é para alguns. Ouvir é para quase ninguém.”
O professor explicou que o Romantismo brasileiro está ligado intimamente ao desejo de independência e libertação e que o século XIX foi de guerra e batalhas. O Romantismo nasceu da Revolução Francesa, que aconteceu em 1789. Tratava-se de um movimento, uma classe como nós aqui, querendo mudar as coisas. Um não aos reis!
A trágica Inconfidência Mineira foi o episódio que marcou o início do Movimento Romântico Brasileiro. De modo geral, todo o movimento organizado que se predispõe a mudar as coisas pode ser considerado um movimento romântico. Os anseios de transformação do povo no século XIX gerou vários levantes regionais. O Romantismo é revolucionário, é das armas, é violento, não é só carinho!
No mesmo ano da Revolução Francesa, 1789, nasce o anseio romântico na literatura brasileira com o esquartejamento de Tiradentes. Em 1808, o Rio de Janeiro se torna a capital do Império português, com a vinda de D. João. Entre outras coisas, a família real trouxe o livro para o Brasil. Até então, o livro só podia ser publicado em Portugal e com o crivo da Igreja. Em 1836, Domingos Magalhães publicou, em Paris, Suspiros poéticos e saudades, um livro muito ruim, que marca o início do Romantismo na literatura brasileira.
Falando sobre a norma culta e a língua, Aderaldo afirmou: “Não existe norma culta! A norma culta é uma língua que o povo não alcança! O povo é que faz a língua! A língua é apenas uma ferramenta. Eu detesto a língua, eu gosto é da linguagem!”
O professor continuou contando:
– Gonçalves Dias cantou o Indio na poesia, Castro Alves, cantou o Negro, da geração Condorneira. Esclareceu que José de Alencar foi figura exponencial do Romantismo Brasileiro, foi o pai do Indianismo, que é uma faceta do Romantismo. No Indianismo, o índio surge cheio de virtudes, o índio cristão, o índio que falava como nos salões de Paris! Iracema a índia dos lábios de mel.
Do Núcleo Romântico do Brasil sobreviveram aqueles que a Academia resolveu colocar no Cânone, mas houve outros autores! Não se tornaram imortais por preconceito, problemas, exclusões. Os irmãos Campos arregaçaram o Cânone e descobriram o Sousândrade, que fundou a poesia épica, poesia na confluência da História. Fora da Academia temos também o poeta negro, Luiz Gamma, autor de Poesia satírica e Qorpo santo, nosso primeiro teatrólogo moderno.
A segunda parte da aula foi dedicada ao naufrágio Romântico nas águas do Cordel. O professor Aderaldo continuou:
– Álvares de Azevedo, um menino poeta do Romantismo, conhecido pelo seu sofrimento, escreveu “Namoro a cavalo”, poesia narrativa com rima e traço cômico raro no Romantismo e “Se eu morresse amanhã”, poesia reflexiva.
O pai do Cordel foi Leandro Gomes de Barros. Nasceu em 1865, em Pombal, Paraíba. O poeta assiste, ainda menino, a primeira cantoria do negro Ignácio e do branco Romano, em que o negro vence. Em 1880, aos 15 anos, foge para Recife, capital da intelectualidade da América Latina. Já possuía o dom da poesia.
O Cordel é todo um complexo intricado de poesia, edição e venda! O Cordel realizou o objetivo romântico de criar uma poesia genuinamente brasileira. É a única literatura legitimamente brasileira, mas não é reconhecida em nenhum Cânone e nem pelos poetas ditos marginais.
José Pacheco fundou a poesia épica dentro do Cordel. Aderaldo afirmou neste momento: “A poesia não tem objetivo, não tem classe social, a poesia é como a morte, ela vai a todo lugar!”
Aderaldo Luciano então se ocupou de seu tema predileto, o Cordel, enfrentando os mitos em torno da tradição:
– O Cordel é genuinamente brasileiro. Nasceu aqui. Não é pendurado com pregador, é vendido no chão. Repente não é Cordel. O Cordel, o Romance, o folheto de feira é essencialmente escrito, é o mesmo trabalho de qualquer poeta. Cordel é uma forma poética, tem estrutura rígida, forma fixa. Trata-se de um folheto de 8 ou 16 páginas, ou, no caso do Romance, 64 páginas, cada uma com 32 estrofes. Geralmente escrito em sextilha (80%), mas pode ser escrito em septilha (15%), ou em décima (5%). No Cordel a métrica, tem que ser respeitada! Tem que se conhecer a tradição. Rima perfeita e soante. Este é o desafio!
O Cordel é primo do Repente que é um ritual muito mais complexo.
A aula do professor Aderaldo Luciano foi histórica, mobilizou pensamento e emoção de todos. Obrigado Aderaldo, professor quebradeiro legítimo!
Por Rute Casoy – Assistente Pedagógica da UQ – 05 de abril de 2013