Quem jamais não viu a velhice louvar o passado e não louvar o presente, imputando ao mundo e aos costumes de sua época sua miséria e sua tristeza? ‘Sacudindo a cabeça calva, o velho lavrador suspira; compara o presente ao passado, louva a felicidade de seu pai e fala sem cessar da moral dos tempos antigos’ [LUCRÉCIO]. MONTAIGNE: Ensaios II; XIII (1)
A menina abriu a mochila e tirou um livro. Devia estar curiosa com o rumo da história. Inconformados, seus colegas me cobraram uma atitude de repreensão: afinal, não se deveria ler (por puro lazer!) na sala de aula, no horário reservado aos deveres da disciplina. Compreensível. Na escola há uma “sala de leitura” e, em espaços escolares, cobra-se que tudo permaneça em seus lugares apropriados e tempo determinado.
Assim, no meio de um turbilhão de olhares, uns concentrados no colorido de seus trabalhos de arte, outros a me cobrarem uma atitude, estavam um livro e uma menina a tirar da mochila, nesse ato tão singular, pessoal, um mundo. Tarde demais para detê-la. Silenciosa, ela havia mergulhado em sua leitura…
Um livro e uma menina a fazer coisas proibidas ao olhar de seus pares. Vendo-a ler, lembrei-me de mim mesma, de meu olhar originário, quando, pré-leitora, cometia pequenas e perversas transgressões com os livros que em minhas mãos se transformavam de suporte da escrita em “livros-arte”.
Preciosos livros de capa dura, retirava-os um por um de sua pequena estante e, escondida de todos os olhares repressores, brincava de sublinhar, contornar, colorir, recortar, furar, rabiscar os inúmeros signos que ali encontrava e que não era ainda capaz de distinguir se números, letras, figuras, símbolos matemáticos, palavras conterrâneas ou estrangeiras. Tudo era encanto e mistério. Livros não serviam para serem lidos. Eram objetos de pura diversão. Sensorial. Carnal.
Meu pecado, no entanto, não era original, tive precursores: os furos das traças e a imundície das baratas. A estante, fragmento de uma velha penteadeira de minha mãe, dava morada, junto às palavras, a toda espécie de insetos caseiros; e a “preciosidade” dos livros estava antes na necessidade escolar de meu irmão mais velho e nos desmedidos esforços de meu pai, incansável em suas buscas pelos sebos da cidade, mesmo mal sabendo assinar o próprio nome, do que na qualidade ou raridade das edições.
Um dia… deram-me o castigo merecido… tive de aprender a ler! Contra minha vontade… Foi duro e dolorido tentar fazer sair de mim o que parecia nunca ter estado lá. “É nossa língua”! Repetiam-me, como se isso fosse bom argumento!
É nossa língua, mas como ela me parecia estranha assim, codificada nas páginas impressas… Tantas regras que mais conseguiam usurpar todo aquele encanto que outrora eu manipulava nos livros, do que me conduzir ao prometido: o fascinante acesso a um mundo novo!
Apanhei muito, chorei muito e, com as letras embaçadas pelas lágrimas, não imaginava encontrar nada sequer parecido com o prazer de outrora. Mas como continuavam a me garantir que um dia isso me viciaria de tanto regozijo… Continuei. Machado de Assis, Mario de Andrade, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector… Os primeiros a me recortarem dos livros um outro prazer. Os primeiros a me levarem do meu cantinho de recortes e cores atrás da velha penteadeira até seus mundos: nosso mundo, nossa língua e suas múltiplas falas. Continuei…
Traduções me conduziram ainda mais longe, até um Cortazar, um Allan Poe, um Oscar Wilde, um Maupassant, um Kafka, um Dostoievski… Os primeiros a me conectarem com outras realidades, outros sonhos, outras dores, os primeiros a me pintarem uma outra história: nossa História, nosso mundo.
As palavras finalmente haviam me seduzido, mas o temor e o tremor continuaram… e a língua permaneceu esse estranho alienígena a habitar-me… Talvez por isso (uma mal curada dislexia?), eu tenha escolhido as imagens às palavras…
Hoje, professora, a cada olhar iniciante que encontro, de fascínio ou temor, para com este estranho e sedutor objeto, o livro, me leva a refletir…
O que é o livro para nossas crianças e nossos jovens? É ainda importante? E a leitura? A escrita? Ainda sedutoras? Sim. Acredito que sim. Vejo que sim. Talvez a relação (ou o meio como chegam) é que tenha mudado. Não mais uma penteadeira velha com ensebados livros… Ou uma bibliografia forçosamente exigida pelo professor. Mas pela sedução das conversas na net, as indicações nos blogs pessoais, nos sites de relacionamento… Uma indicação de um amigo aqui, um comentário ali… E a curiosidade vai se instalando… Primeiro, uma versão on-line – para chegar rápido à obra e matar logo a curiosidade -, depois… de uma biblioteca virtual a uma real… Quem sabe? Mas só na virtualidade, quanta coisa não há?
E a escrita? Primeiro, uma conversa entre amigos internautas: a escrita rápida, “descuidada”, plena de gírias específicas, de sinais, de visualidades, de abreviações inventadas especialmente para esse meio… Uma fala quase “oral”, melhor: oral-literário-visual. Depois… Quem sabe… Talvez a vontade cresça… Vontade de escrever mais, de se expressar para um púbico maior do que seu virtual grupo de relacionamentos… Usar outros meios, outros modos de escrita… Vontade de expandir sua fala mundo afora…
Palavras… Falas… Livro, o que importa se digital, navegável, que importa se é simples brochura, ensebado, carcomido, ou belamente resguardado em duras e preciosas capas? E-book ou o velho livro guardião da palavra… que importa? …um suporte para as escutas e falas, um passaporte para cruzar fronteiras, conectando o singular e o social, o individual e o histórico: o “eu” e o “eles” num “nós”…
Escrever, ler (palavras, imagens…) têm um lado que é sempre singular, pessoal, experiência única. Ao mesmo tempo, como dizê-la única e pessoal sem trair o coletivo ao qual pertencemos? O ar que respiramos e nos ensina a ver segundo seus perfumes: às vezes lúgubres, outras vezes doces… O povo do qual nascemos, seus sabores e dores, sua diversidade e adversidades… A língua que falamos, lemos, amamos (e, às vezes, tememos). Milhares de línguas, milhares de falas que o mundo comporta e que gostaríamos de poder partilhar pelo acesso direto ou pelos tradutores. Milhares de signos, de leituras: infindáveis em seus mistérios…
Todo este “antes”, em que um dia nos encontramos inseridos, todo este antes, mergulhado num agora, projetado num amanhã, chamado cultura e história e que nos faz ser como somos: um singular que compartilha um destino comum que coexiste num mesmo mundo e aí aprende a ser comum com todo outro: a conviver.
Tudo se repete e há sempre uma nova história. Aqui estou eu, professora, um turbilhão de olhares, um livro e uma menina. Ela poderia estar em qualquer tempo e lugar do mundo, mas ela e seus colegas estão aqui, cúmplices de nossa contemporaneidade. Encurralados pelo medo e balas perdidas; sitiados pela insegurança; desabrigados pelas enchentes e desmoronamentos; perdidos pela insensatez que reina solta: singulares tragédias que nos espreitam a cada esquina e nossa comum tragédia preste a fazer detonar o mundo inteiro…
O homem e o mundo, hoje como ontem, cada vez mais divididos pelas margens de um rio, pelos lados das montanhas, por destoantes tempos históricos que, paradoxalmente, se sobrepõem em nossa mesma contemporaneidade. Um mundo virtual e um mundo real, um mundo computadorizado, informatizado, sintonizado e um mundo volatilizado, virado poeira, pelos desertos de guerra e fome; um mundo chacinado, manchado. Aqui estamos nós: divididos pelo vazio que nos ronda, ou, quem sabe, o sentido que ainda nos resta? O que está ainda ao nosso alcance saber? O que ainda queremos? O que ainda nos é digno esperar? Quanta insegurança e conflitos, quantos problemas a serem superados: desemprego, desestruturação familiar, violência urbana, guerras de tráfico… Tantas urgências a serem satisfeitas: moradia insuficiente, condições precárias de saúde, vestimenta, alimentação… Superar tudo isso e ainda encontrar tempo, ânimo, disposição, alegria para se concentrar na leitura, dinheiro para comprar o livro ou empenho para pedi-lo emprestado, deslocar-se até uma biblioteca (às vezes distante…), conectar-se à rede… buscar o rumo da história!
Quase surreal? Mas o que sobra de realidade senão refugiarem-se (quando ao menos isso é possível!) nossos pequenos cidadãos neste “abrigo” (nem sempre tão seguro como gostaríamos…) chamado escola? E se para alguns a escola “não mais interessa” (incluindo aí até mesmo professores, que já tendo desistido de acreditar, preferem louvar a escola do passado, o alunado de outrora, os “bons tempos” que não voltam mais… esquecendo que o tempo sempre se renova!), para muitos a escola ainda é o lugar da esperança, o lugar (às vezes o único) que torna possível o encontro com novas possibilidades, experiências, perspectivas… Aqui (ainda) se condiciona e se repete – se “disciplina” – , mas aqui também se encontra o tempo e o espaço para se exercer a singularidade de ler, pensar, escrever, refletir, sonhar, criar, construir realidades e, então, (com)partilhar…
Aqui, como na pequena estante de minha infância, deixei-me seduzir pelas imagens e palavras, suas leituras, suas vozes e escutas, suas cores e formas: a vida sempre a se renovar… Aqui, encontro olhares que se iniciam. Pequenos olhares: grandes olhares. Receosos, curiosos, inconformados, indisciplinados, sedentos, exigentes, encantados… Aqui, no olhar de cada pequeno cidadão que nasce para o mundo inicia-se o esboço que continuará a traçar nossa cultura, nossa história, nossos destinos…
(1) Lucrécio, poeta e pensador latino do séc. I a.C., citado por Montaigne, pensador francês do séc.XVI, citado por Imaculada Conceição, arte-educadora do ensino fundamental do Rio de Janeiro, séc.XXI.
Imaculada Conceição Manhães Marins, é Arte educadora da SME e quebradeira da 4ª edição da UQ