Por Danielle Mendes e Georgina Martins
A professora Doutora Danielle Mendes Pereira, do Departamento de Letras-Libras da Faculdade de Letras da UFRJ, foi responsável pela aula sobre gêneros literários nas Quebradas.
A principal novidade dessa aula foi a presença de alguns alunos surdos da professora Danielle, e consequentemente a tradução de todo seu conteúdo para Libras (Língua de Sinais Brasileira).
A primeira questão que Danielle levantou foi a de que nenhuma classificação é inocente, pois ao nomear, classificar e ordenar alguma coisa, automaticamente, estabelecemos um controle sobre essa coisa, uma forma, um modelo.
Em uma concepção clássica, a divisão era tripartite, ou seja, as manifestações artísticas eram divididas em três partes, a saber: o Lírico, o Épico e o Dramático.
O gênero lírico era aquele inspirado pela música, pela lira, pela cítara, pela flauta. De cunho subjetivo e emocional. Nesse gênero não havia uma preocupação em contar história, apesar de que havia também o Lírico participativo: autores engajados que tinham o desejo de denunciar os fatos. Tudo marcado pela musicalidade. Já o gênero Épico preocupava-se em contar sempre uma história, como a Ilíada e a Odisseia. E o Dramático responsabilizava-se pelas Tragédias e Comédias.
A palavra comédia vem de Komos: cidade, e os comediantes eram aqueles que passavam de cidade em cidade; e Tragédia, que em grego era Tragoidía, queria dizer canto do bode, porque tragos = bode e oide é = a canto. Essa manifestação artística era utilizada para homenagear Dionísio ou Baco, deus do vinho, da orgia. A tragédia tem origem nos festivais dionisíacos, nos quais usavam-se máscaras. Com o tempo, mais ou menos em 534 a.c., a Tragédia ganha formação teatral e surge então o Hipócrita, aquele que finge ser o que não é, ou seja, o ator.
Na aula, abordou, também, os modos como a Tragédia demonstrava a ausência de domínio do sujeito e a sua precariedade diante da força do destino, do dáimon. Neste sentido, a Tragédia era usada pelo Estado grego, que patrocinava os festivais de dramaturgia trágica, como instrumento de controle social.
A discussão sobre os gêneros literários já era abordada nos textos do filósofo Platão, na Grécia Antiga. Ao discutir como seria a cidade-estado ideal, em seu livro A República, o filósofo apoiou-se na sua visão dupla de mundo, que compreendia um mundo ideal, no qual estaria a ideia pura e acessível, através da razão; e um mundo sensível, perceptível pelos sentidos, no qual haveria a imitação da ideia, o que o torna um mundo de aparências. Deste modo, ao representar os objetos, o poeta (assim como o pintor) realiza a imitação do que já seria uma imitação, afastando o receptor da obra de verdade. Se no Livro III da mesma obra discute-se a divisão dos gêneros, no Livro X defende-se a mediocridade da poesia e destaca-se o processo de representação como capaz de gerar a desmedida e a confusão sobre o real. Por tais razões, Platão irá propor a expulsão do poeta e do pintor da república ideal.
O discípulo de Platão, Aristóteles, afastou-se da visão de seu mestre e propôs uma linha de pensamento que percebia a poesia como extremamente positiva. Para ele, ao imitar, o poeta não afasta o receptor da realidade, mas antes promove o seu conhecimento, pois seria por meio da imitação que o homem conheceria o mundo. Portanto, a visão aristotélica resgata a poesia da leitura moralizante de Platão e a apresenta como um modo privilegiado de cognição. Apoia a mimese na possibilidade, isto é, apresenta a ideia de que “o poeta fala das coisas não como são, mas como poderiam ser”.
Ao escrever a obra Arte poética, Aristóteles busca classificar e compreender as manifestações poéticas. O texto que conhecemos hoje está incompleto e abarca duas partes: a primeira, reflete sobre a condição do poético; segunda, privilegia os estudos sobre a épica e o drama, com dedicação dominante ao gênero trágico, para ele o gênero supremo e mais completo. O autor destaca o fato de a tragédia provocar a catarse no espectador, que seria tomado por sentimentos extremos de terror e piedade ao assisti-la, que o levariam a uma sensação de purificação.
Pelo fato do livro não ter sobrevivido na íntegra, não se sabe se o filósofo dedicou à poesia lírica apenas as poucas palavras de abertura do livro, no qual trata de formas líricas, ou se houve uma dedicação maior para pensar sobre este gênero. Aristóteles reflete, sobretudo, sobre a mimese como um índice para classificar as diversas manifestações poéticas, a partir da indagação sobre o meio, o modo e o objeto de imitação dos gêneros.
Posteriormente, foi feito um breve percurso histórico sobre os gêneros literários, a fim de provocar a percepção sobre como as visões de mundo podem impactar nas produções de conceitos sobre o literário e os seus gêneros. Discutiu-se como a existência de duas tensões conceptivas principais — normativa e subjetiva —, perpassa esse percurso desde a Idade Média, com o surgimento de novos gêneros, até a contemporaneidade. Falou-se ainda sobre diversos aspectos da natureza dinâmica dos gêneros, com a emergência de novas expressões de experiências híbridas, especialmente a partir do Romantismo. Assim, discutiu-se a origem da cantiga, pelo trovadorismo, na Idade Média, e a separação entre letra e música no Renascimento, ainda que os elementos da musicalidade tenham permanecido na poesia lírica. Falou-se, também, sobre como Dante Alighieri, no século XIV, com A Divina Comédia, reelabora elementos do épico, e como Miguel de Cervantes, com Dom Quixote, recria a ideia de herói, a partir da construção de um protagonista problemático que, na visão de Georg Lukács, afirma-se como um anti-herói.
Ressaltou-se como houve no Classicismo a formação de um olhar normativo sobre os gêneros literários, pela retomada do pensamento aristotélico, que tendeu a vigorar até o Neoclassicismo, embora tenha esbarrado na querela entre os antigos e os modernos, que confrontava a normatização e a liberdade criativa.
A ideia dessa liberdade criativa e a exigência da autonomia subjetiva do criador diante da obra artística serão defendidas pelo movimento alemão “Sturm und drung” (Tempestade e ímpeto), no século XVIII, que abriu espaço para a visão romântica do artista como gênio criador, dono de uma visão de mundo privilegiada. A defesa romântica da expressão criadora subjetiva, e a sua oposição ao código clássico, expôs a labilidade fronteiriça da noção de gêneros literários e abriu espaço para certas experimentações, vendo o surgimento de novos gêneros e o hibridismo como válidos e desejáveis. Foi abordado como tais ideias encontraram abrigo, por exemplo, no texto “Do grotesco e do sublime”, prefácio de Victor Hugo a Cromwell; ou, no Brasil, na experimentação de uma prosa com fortes traços líricos em Iracema, de José de Alencar, bem como em Macário e “Namoro a cavalo”, de Álvares de Azevedo. Ressaltou-se o predomínio do hibridismo, sobretudo no século XX e XXI, como demonstram, por exemplo, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto,“O caso do Vestido”, de Carlos Drummond de Andrade, e Memórias Sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade, dentre tantos outros textos.
As percepções dos gêneros literários entre os séculos XIX e XX tenderam a confrontes o imanentismo e o funcionalismo, isto é, como o discurso literário funciona a fim de ser reconhecido como literário. Esta visão pode ser lida em consonância às propostas da Estética da Recepção e Efeito, uma vez que existem esquemas e convenções de gêneros que orientam determinadas formas de recepção e produção de textos. Foi citado o texto “Hamlet na selva”, da antropóloga, Laura Bohannan, para a reflexão sobre as relações entre os processos de recepção e a compreensão dos gêneros, percebendo-os como mutáveis e dependentes de contextos de leitura.
Por fim, retomou-se a discussão sobre o hibridismo e a liberdade criativa, a partir da ideia de controle e resistência que podem surgir através do confronto entre a liberdade de experimentar processos de escrita e as exigências do mercado editorial. O processo de organização e classificação dos gêneros está também a serviço das editoras. Entretanto, não há mais sentido em pensar em Gêneros Literários como categorias imanentes, puras ou fixas. Essa catalogação não deve ser um ponto de preocupação importante para o estudo da literatura contemporânea. Destacou-se, nesse sentido, a leitura de obras de autores coevos, como Ferréz- com o hibridismo de elementos dramáticos, líricos e narrativos e o diálogo com outras linguagens artísticas, como o rap; e como Marcelino Freire que em Contos Negreiros, por exemplo, estabelece elementos intertextuais com o canônico Castro Alves e os seus possíveis laivos lírico-épicos- dramáticos, pela abordagem do tema, pela opção de dividir os contos em cantos e pela escolha de elementos pré-textuais, como a capa. Freire elabora uma prosa poética aliada a um forte senso dramático em sua narrativa, como ao optar pela ausência de descrições e de estratégias de apresentação da personagem, pela representação de uma linguagem literária próxima à oralidade, e pelo modo como simboliza, de modo paradoxal, a falência do épico. O interesse por essa arquitetura literária torna-se mais interessante do que tentar adequá-lo a uma etiqueta classificatória quanto ao gênero literário da obra.
Portanto, diante da abertura das formas e da problematização do conceito pelas estéticas da recepção e do efeito abre-se espaço para a compreensão do hibridismo e da multiplicidade nos processos de conformação dos gêneros literários como elementos fundamentais para refletirmos sobre este conceito.