Dia 23/09/14 a aula será da professora Martha Alkimin que abordará a sempre atual literatura de Homero e seus desdobramentos na literatura universal.
Leia o texto abaixo e venha trocar saberes!
AS ODISSEIAS NA ODISSEIA
QUANTAS ODISSEIAS CONTÉM a Odisseia? No início do poema, a “Telemaquia” é a busca de uma narrativa que não existe, aquela narrativa que será a Odisseia. No palácio de Ítaca, o cantor Fêmio já sabe os nostoi dos outros heróis; só lhe falta um, o de seu rei; por isso, Penélope não quer mais ouvi-lo cantar. E Telêmaco parte em busca dessa narrativa junto aos veteranos da Guerra de Troia: se a encontrar, termine ela bem ou mal, Ítaca sairá da situação amorfa sem tempo e sem lei em que se encontra há tantos anos.
Como todos os veteranos, também Nestor e Menelau têm muito para contar; mas não a história que Telêmaco procura. Até que Menelau aparece com uma fantástica aventura: disfarçado de foca, capturou o “velho do mar”, isto é, Proteu das infinitas metamorfoses, e obrigou-o a contar-lhe o passado e o futuro. Certamente Proteu já conhecia toda a Odisseia de ponta a ponta: começa a relatar as aventuras de Ulisses do mesmo ponto que Homero, com o herói na ilha de Calipso; depois se interrompe. Naquela altura, Homero pode substituí-lo e continuar a narração.
Tendo chegado à corte dos feacos, Ulisses ouve um aedo cego como Homero que canta as peripécias de Ulisses; o herói explode em lágrimas; depois se decide a narrar ele próprio. No relato, chega ao Hades para interrogar Tirésias e este lhe conta a sequência da história. Mais tarde, Ulisses encontra as sereias que cantam; o que cantam? Ainda a Odisseia, quem sabe igual àquela que estamos lendo, talvez muito diferente. Este retorno-narrativa é algo que já existe, antes de se completar: preexiste à própria atuação. Já na “Telemaquia”, encontramos as expressões “pensar o retorno”, “dizer o retorno”. Zeus não “pensava no retorno” dos atridas (III, 160); Menelau pede à filha de Proteu que lhe “diga o retorno” (IV, 379) e ela lhe explica como obrigar o pai a contá-lo (390), e assim o atrida pode capturar Proteu e pedir-lhe: “Diga-me o retorno, como velejarei no mar piscoso” (470).
O retorno deve ser identificado, pensado e relembrado: o perigo é que possa ser esquecido antes que ocorra. De fato, uma das primeiras etapas da viagem contada por Ulisses, aquela na terra dos lotófagos, comporta o risco de perder a memória, por ter comido o doce fruto do lótus. Que a prova do esquecimento se apresente no início do itinerário de Ulisses, e não no fim, pode parecer estranho. Se, após ter superado tantos desafios, suportado tantas travessias, aprendido tantas lições, Ulisses tivesse esquecido algo, sua perda teria sido bem mais grave: não extrair experiências do que sofrera, nenhum sentido daquilo que vivera.
Contudo, “pensando bem, a perda da memória é uma ameaça que nos cantos IX-XII se repropõe várias vezes: primeiro com o convite dos lotófagos, depois com os elixires de Circe e mais tarde com o canto das sereias. Em todas as situações Ulisses deve estar atento, se não quiser esquecer de repente… Esquecer o quê? A Guerra de Troia? O assédio? O cavalo? Não: a casa, a rota da navegação, o objetivo da viagem. A expressão que Homero usa nesses casos é “esquecer o retorno”.
Ulisses não deve esquecer o caminho que tem de percorrer, a forma de seu destino: em resumo, não pode esquecer a Odisseia. Porém, mesmo o aedo que compõe improvisando ou o rapsodo que repete de cor trechos de poemas já cantados não podem olvidar se querem “dizer o retorno”; para quem canta versos sem o apoio de um texto escrito, esquecer é o verbo mais negativo que existe; e para eles “esquecer o retorno” significa olvidar os poemas chamados nostoi, cavalo de batalha de seu repertório.
Sobre o tema “esquecer o futuro” publiquei há anos algumas considerações (Corriere della Sera, 10/8/75) que assim concluíam:
O que Ulisses salva do lótus, das drogas de Circe, do canto das sereias, não é apenas o passado e o futuro. A memória conta realmente — para os indivíduos, as coletividades, as civilizações — só se mantiver junto a marca do passado e o projeto do futuro, se permitir fazer sem esquecer aquilo que se pretendia fazer, tornar-se sem deixar de ser, ser sem deixar de tornar-se.
Ao meu texto seguia-se uma intervenção de Edoardo Sanguineti no Paese Sera (agora noGiornalino 1973-1975, Turim, Einaudi, 1976) e uma réplica de cada um, minha e dele. Sanguineti objetava:
Porque não se pode esquecer que a viagem de Ulisses não é de jeito nenhum uma viagem de ida, mas de retorno. E então é preciso interrogar-se um momento, exatamente, que tipo de futuro ele tem pela frente: pois aquele futuro que Ulisses anda procurando é de fato o seu passado. Ulisses vence as bajulações da Regressão porque se acha todo voltado para uma Restauração.
Compreende-se que um dia, por despeito, o verdadeiro Ulisses, o grande Ulisses, tenha se tornado aquele da Última viagem: para o qual o futuro não é de modo nenhum um passado, mas a Realização de uma Profecia — isto é, de uma verdadeira Utopia. Ao passo que o Ulisses homérico logra recuperar seu passado como um presente: sua sabedoria é a Repetição e isso pode ser bem reconhecido pela Cicatriz que traz e que o marca para sempre.
Em resposta a Sanguineti, lembrava eu que (Corriere della Sera, 14/10/75) “na linguagem dos mitos, bem como na das fábulas e do romance popular, toda empresa portadora de justiça, reparadora de ofensas, resgate de uma condição miserável, vem em geral representada como a restauração de uma ordem ideal anterior; o desejo de um futuro a ser conquistado é garantido pela memória de um passado perdido”.
Se examinarmos as fábulas populares, verificaremos que elas apresentam dois tipos de transformação social, sempre com final feliz: primeiro de cima para baixo e depois de novo para cima; ou então simplesmente de baixo para cima. No primeiro tipo, existe um príncipe que por alguma circunstância desastrosa se vê reduzido a guardador de porcos ou alguma outra condição miserável, para depois reconquistar sua condição real; no segundo tipo, existe um jovem que não possui nada desde o nascimento, pastor ou camponês e talvez também pobre de espírito, que por virtude própria ou ajudado por seres mágicos consegue se casar com a princesa e tornar-se rei.
Os mesmos esquemas valem para as fábulas com protagonista feminina: no primeiro tipo, a donzela de uma condição real ou pelo menos privilegiada cai numa situação despojada pela rivalidade de uma madrasta (como Branca de Neve) ou de meias-irmãs (como Cinderela) até que um príncipe se apaixona por ela e a conduz ao vértice da escala social; no segundo tipo, se encontra uma verdadeira pastora ou camponesa pobre que supera todas as desvantagens de seu humilde nascimento e realiza núpcias principescas.
Poderíamos pensar que as fábulas do segundo tipo são as que exprimem mais diretamente o desejo popular de uma reviravolta dos papéis sociais e dos destinos individuais, ao passo que as do primeiro tipo deixam aparecer tal desejo de forma mais atenuada, como restauração de uma hipotética ordem precedente. Mas, pensando bem, os destinos extraordinários do pastorzinho ou da pastorinha representam apenas uma ilusão miraculosa e consoladora que será depois largamente continuada pelo romance popular e sentimental. Todavia, os infortúnios do príncipe ou da rainha desventurada associam a imagem da pobreza com a ideia de um direito subtraído, de uma justiça a ser reivindicada, isto é, estabelecem (no plano da fantasia, onde as ideias podem deitar raízes sob a forma de figuras elementares) um ponto que será fundamental para toda a tomada de consciência social da época moderna, da Revolução Francesa em diante.
No inconsciente coletivo, o príncipe disfarçado de pobre é a prova de que cada pobre é na realidade um príncipe que sofreu uma usurpação e que deve reconquistar seu reino. Ulisses ou Guerin Meschino ou Robin Hood, reis ou filhos de reis ou nobres cavaleiros caídos em desgraça, quando triunfarem sobre seus inimigos hão de restaurar uma sociedade dos justos em que será reconhecida sua verdadeira identidade.
Mas será ainda a mesma identidade de antes? O Ulisses que desembarca em Ítaca como um velho mendigo irreconhecível a todos talvez não seja mais a mesma pessoa que o Ulisses que partiu para Troia. Não por acaso salvara a vida trocando o nome para Ninguém. O único reconhecimento imediato e espontâneo vem do cão Argos, como se a continuidade do indivíduo só se manifestasse por meio de sinais perceptíveis para um olho animal.
Para a ama de leite sua identidade é comprovada por uma cicatriz de garra de javali, o segredo da fabricação do leito nupcial com uma raiz de oliveira é a prova para a esposa e, para o pai, uma lista de árvores frutíferas; todos eles signos que não têm nada de régio, que associam o herói com um caçador, um marceneiro, um homem do campo. A esses sinais se acrescentam a força física e uma combatividade impiedosa contra os inimigos; e sobretudo o favor manifestado pelos deuses, que é aquilo que convence também Telêmaco, mas só enquanto ato de fé.
Por seu lado Ulisses, irreconhecível, despertando em Ítaca não reconhece sua pátria. Atenas terá de intervir para garantir-lhe que Ítaca é mesmo Ítaca. A crise de identidade é geral, na segunda metade da Odisseia. Só a narrativa garante que as personagens são as mesmas personagens e os lugares são os mesmos lugares. Mas também a narrativa muda. O relato que o irreconhecível Ulisses faz ao pastor Eumeu, depois ao rival Antinous e à própria Penélope é uma outra odisseia, completamente diversa; as peregrinações que levaram de Creta até ali a personagem fictícia que ele afirma ser, uma história de naufrágios e piratas muito mais verossímil do que aquela que ele mesmo fizera ao rei dos feacos. Quem nos garante que não seja esta a “verdadeira” odisseia? Mas esta nova odisseia remete a uma outra odisseia ainda: o cretense encontrara Ulisses em suas viagens; assim, eis que Ulisses narra de um Ulisses em viagem por países em que a Odisseiaconsiderada “verdadeira” não o fizera passar.
Que Ulisses era um mistificador já se sabia antes da Odisseia. Não foi ele quem inventou o grande engodo do cavalo? E, no início da Odisseia, as primeiras evocações de sua personagem são dois flashbacks sobre a Guerra de Troia narrados um depois do outro por Helena e Menelau: duas histórias de simulação. Na primeira, ele penetra com vestimentas falsas na cidade assediada para ali introduzir a chacina; na segunda, é encerrado dentro do cavalo com seus companheiros e consegue impedir que Helena os desmascare induzindo-os a falar.
(Em ambos os episódios, Ulisses se encontra perante Helena; no primeiro como aliada, cúmplice da simulação; no segundo enquanto adversária que imita as vozes das mulheres dos aqueus para induzi-los a trair-se. O papel de Helena é contraditório, mas sempre marcado pela simulação. Do mesmo modo, Penélope também se apresenta como fingidora, com o estratagema do tecido; o bordado de Penélope é um estratagema simétrico ao do cavalo de Troia e, como ele, é um produto da habilidade manual e da contrafação: as duas principais qualidades de Ulisses são também características de Penélope.)
Se Ulisses é um simulador, todo o relato que ele faz ao rei dos feacos poderia ser mentiroso. De fato, suas aventuras marítimas, concentradas em quatro livros centrais da Odisseia, rápida sucessão de encontros com seres fantásticos (que surgem nas fábulas do folclore de todos os tempos e lugares: o ogro Polifemo, os vinte encerrados no odre, os encantos de Circe, sereias e monstros marinhos), contrastam com o restante do poema, em que dominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dramático gravitando sobre um objetivo: a reconquista do reino e da mulher cercados pelos prócios. Também aqui se encontram motivos comuns às fábulas populares, como o tecido de Penélope e a prova de arco e flecha, mas estamos num terreno mais próximo dos critérios modernos de realismo e verossimilhança: as intervenções sobrenaturais concernem somente às aparições dos deuses olímpicos, em geral encobertos por feições humanas.
Porém, é preciso recordar que as mesmas aventuras (sobretudo a de Polifemo) são evocadas igualmente em outras passagens do poema, portanto o próprio Homero vai confirmá-las; e não é só isso: os próprios deuses discutem-nas no Olimpo. E que também Menelau, na “Telemaquia”, conta uma aventura com a mesma matriz fabular que a de Ulisses: o encontro com o velho do mar. Só nos resta atribuir as diversidades de estilo fantástico àquela montagem de tradições de diferentes origens transmitidas pelos aedos e depois desembocadas na Odisseia homérica, e que no relato de Ulisses na primeira pessoa revelaria seu substrato mais arcaico.
Mais arcaico? Segundo Alfred Heubeck, as coisas poderiam ter ocorrido de maneira exatamente oposta. (Ver Homero, Odissea, Livros I-IV, introdução de A. Heubeck, texto e comentário de Stephanie West, Milão, Fundação Lorenzo Valla/Mondadori, 1981.)
Antes da Odisseia (incluindo-se a Ilíada), Ulisses sempre fora um herói épico, e os heróis épicos, como Aquiles e Heitor na Ilíada, não têm aventuras fabulares daquele tipo, na base de monstros e encantos. Mas o autor da Odisseia deve manter Ulisses longe de casa por dez anos, desaparecido, inalcançável para os familiares e para os ex-companheiros de armas. Para conseguir isso, deve fazê-lo sair do mundo conhecido, entrar em outra geografia, num mundo extra-humano, num além (não por acaso suas viagens culminam na visita aos Infernos). Para tal extrapolação dos territórios da épica, o autor da Odisseia recorre a tradições (estas, sim, mais arcaicas) como as peripécias de Jasão e dos argonautas.
Portanto, constitui a novidade da Odisseia ter colocado um herói épico como Ulisses às voltas “com bruxas e gigantes, com monstros e devoradores de homens”, isto é, em situações de um tipo de saga mais arcaico, cujas raízes devem ser buscadas “no mundo da antiga fábula e até de primitivas concepções mágicas e xamanísticas”.
É aqui que o autor da Odisseia manifesta, segundo Heubeck, sua verdadeira modernidade, aquela que o torna próximo e atual: se tradicionalmente o herói épico era um paradigma de virtudes aristocráticas e militares, Ulisses é tudo isso e ainda mais, é o homem que suporta as experiências mais duras, as fadigas, a dor e a solidão. “Certamente ele arrasta seu público a um mítico mundo de sonho, mas esse mundo de sonho se torna simultaneamente a imagem especular do mundo real em que vivemos, no qual dominam necessidades e angústia, terror e dores, e no qual o homem se acha imerso sem escapatória.”
No mesmo volume, Stephanie West, embora partindo de premissas diferentes das de Heubeck, formula uma hipótese que daria validade ao discurso dele: a hipótese de que tenha existido uma odisseia alternativa, um outro itinerário do retorno, anterior a Homero. Homero (ou quem quer que fosse o autor da Odisseia), considerando esse discurso de viagens muito pobre e pouco significativo, tê-lo-ia substituído pelas aventuras fabulosas, mas inspirando-se nas viagens do pseudocretense. De fato, no proêmio existe um verso que deveria apresentar-se como a síntese de toda a Odisseia: “De muitos homens vi as cidades e conheci os pensamentos”. Que cidades? Quais pensamentos? Tal hipótese se adaptaria melhor ao relato das viagens do pseudocretense…
Porém, assim que Penélope o reconheceu, no leito reconquistado, Ulisses volta a falar de ciclopes, sereias… Será que a Odisseia não é o mito de todas as viagens? Talvez para Ulisses-Homero a distinção mentira/verdade não existisse, talvez ele narrasse a mesma experiência ora na linguagem do vivido ora na linguagem do mito, como ainda hoje para nós cada viagem, pequena ou grande, sempre é odisseia.
1983
CALVINO, Italo. As Odisseias na Odisseia. In: Por que ler os clássicos?