Queridos e Queridas
Quebradeiros e Quebradeiras,
Heloísa me escreveu perguntando se eu estava acompanhando a repercussão da África no Subúrbio. Não tinha a menor ideia do que ela me perguntava. Estive ocupada todo o fim de semana e nem liguei o computador.
Bem, quando os e-mail começaram a pipocar, eu fui para a internet procurar notícias sobre as repercussões de rebeliões em subúrbios. Mas só encontrava as notícias sobre “Revolta dos jovens dos subúrbios da França em 2005”. Não me vinha nem um verso do rap de Caetano Veloso e Gilberto Gil “O Haiti é aqui”. Não pensei nem por um momento que aquele tipo de repercussão estava na nossa gira.
Quando fui lendo o desenrolar dos textos, fiquei pasma. Uma frase destampou meu cérebro para escrever o que agora mando como mote para refletirmos sobre o que estamos quebrando e o que ainda se posta na nossa frente como um monolito para ser demolido. Pensei: como os negros são pacientes. Passaram a vida inteira assistindo o protagonismo do branco em todos os lugares. Numa vezinha, pequenininha, num palco armado tão rápido como se desfez, onde quase todos que ali se apresentavam eram negros, deu essa celeuma toda?!
Esperem aí:
– em primeiro lugar: não houve concurso nem edital para ver quem entrava no elenco para fazer o trabalho que vimos no MAR. Eu mesma que coordeno o Coletivo, quando dei por mim, quando dei por nós, o grupo já estava formado. Foi uma reunião espontânea. E houve até quem saiu. Entraria quem quisesse. A princípio não houve escolha. As pessoas se juntaram e foram se organizando e criando o roteiro. Quando vi o roteiro, pensei em Mãe Beata e a convidei. A Hare é branca e estava lá. Eu sou neguinha? Também estava lá.
– para estudar: ninguém tem poder para engendrar qualquer tipo de racismo por si só. Este depende de condições históricas, relações de pode econômico e de submissão de um povo por outro. Se o branco ainda é privilegiado no nosso país, não há como discriminá-lo. Sabe a estrutura da comédia? uma piada, ou uma comédia só será realizada quando o ouvinte ou o espectador sacar a carta X que está em jogo e rir. Por isso a gente fica com cara de pateta quando os apresentadores de prêmios como o Oscar, por exemplo, fazem gracinhas. Não podemos rir, porque há muita coisa por trás de uma frase ou um dito espirituoso, que somente aqueles que compartilham a mesma cultura ou as mesmas informações anteriores podem deduzir e entender. A comédia só se completa no reconhecimento do outro que a assiste. Assim é com o racismo: Qualquer coisa que se faça contra brancos não tem força suficiente para virar o jogo, fazer racismo ao contrário, não tem pegada, não tem história. Para se construir o racismo contra os negros e os judeus, por exemplo, é preciso contarmos os séculos de história que foram necessários para aquilo se consolidar. E se formos estudar isso, ainda vamos ter dificuldade de entendermos como aquilo se constituiu dentro de cada um.
– terceiro: acho que nós sabemos muito pouco distinguir preconceito e racismo; diferença entre pessoas e igualdade de direitos. Esse tema deveria entrar na nossa pauta para ontem. Vamos trabalhar interiormente também, porque há um aspecto psíquico, um evento subjetivo de cada um de nós que reage a toda esta problemática e que tem a ver com nosso sinthoma, com a nossa formação própria, a de cada um. Mas este ponto subjetivo é para cada um refletir sozinho, não vamos levar isso para o lado pessoal, no sentido de que a discussão não deve seguir com vistas a brigarmos entre nós. Vamos tratar disso publicamente trabalhando as formas de saber para vencermos a dificuldade teórica da coisa. Vale a pena fazer uma reflexão mais comprometida com vistas a saber como podemos provocar as verdadeiras mudanças.
Neste momento histórico é preciso que os NEGROS tenham visibilidade. Mas eu sonho com o dia em que eles serão invisíveis: quando estiverem 100, 1000 negros reunidos nas ruas, em casa, num palco qualquer e ninguém dê por isso.
Boa noite,
Numa de alma negra.
Nós brancos devemos agora passar o anel…