A construção étnico-sociocultural do brasileiro
por Angelo Mello
O Brasil vem sendo inventado, entendido e reinventado a cada dia. Estudos na área de ciências humanas mostram como uma cultura relativamente nova vem sendo forjada e lapidada, com seus matizes e arestas a serem entendidos, refletidos, modelados e remodelados no cotidiano de “refazimento” de um “povo novo”.
Darcy Ribeiro elabora um estudo que extrai do cerne a construção de um povo maleável como a borracha da seringueira, trabalhado através de linhas sulcosas, retirando o que tem de mais puro e caro para a sociedade, desvelando como nasceu e vem sendo forjada a sua nação mantenedora no livro O povo brasileiro.
Essa nova mistura genética feita pelo cunhadismo, segundo Darcy Ribeiro, favoreceu as bases genético-cultural que se estabelecem hoje, proporcionando características essenciais e únicas à mistura do brasileiro. Desenvolveu um jeito peculiar de ver e entender o mundo, não era índios e tão pouco portugueses que aprenderam as técnicas necessárias para entender a terra chamada Brasil, era o início de uma nação se formando em seu próprio cotidiano, experimentando, percebendo as necessidades e aprendendo a viver em uma terra com grandes oportunidades.
O português percebeu a necessidade de uma força de trabalho específica, que não fugisse da lida tanto quanto os “ameríndios” fugiam, e trouxeram então os africanos, em suas naus abarrotadas de gente para “gastar”, utilizando a força de trabalho dos africanos até a exaustão, como uma fornalha que necessita de mais lenha… e tome mais e mais lenha vinda da África. Abarrotando os cofres de Portugal de modo exorbitante de produtos, que só a terra Brasil poderia proporcionar, deixando-os cada dia mais ricos com a “gasta” de gente.
Os africanos não se viam como gente da terra, eles estavam, mas não eram já seus filhos. Uma mistura de português com negro, formava o crioulo, esses nascidos, eram não estavam, e passavam pelo mesmo processo de busca de identidade em que os mamelucos (mistura de português com índio) sofriam.
Nesse ínterim, houve várias misturas, e assim foi criada a identidade brasileira, foram perdendo as defesas identitárias culturais africanas, indígenas e portuguesas, construindo uma “etnia brasileira”, através dos ventres de mulheres sofridas, foi nascendo o “amálgama” Brasil com cores étnico-culturais sem igual.
Forjando um povo único, aprendendo a lidar com um passado histórico de diferenciações ética-sociocultural múltipla, para entender o presente e construí-lo abandonando alguns vícios, estimulando o que tem de melhor, que é, a meu ver, o caráter de conviver com as diferenças.
Mnemósine Periférica
por Marcio Rufino
O dia estava nublado. No meio do caminho para o ponto de ônibus, o esquecimento do guarda-chuva e o pânico com a possibilidade de chuva me assaltam; mas a preguiça em voltar para casa buscar o objeto-portátil me vence. Preferi correr o risco de chegar no MAR ensopado. A possibilidade de pegar uma chuva quando desembarcasse do metrô era grande. Peguei o ônibus até a Pavuna. Na Pavuna peguei o metrô até a Uruguaiana. Não podia chegar mais atrasado à primeira aula da UQ do que eu já sabia que ia chegar.
Qual não foi minha felicidade quando chego na Uruguaiana e sinto algumas timidíssimas gotículas de chuvisco que não me incomodam em nada. Chego no MAR. O rapaz me indica a sala da palestra. Subo pelo elevador e, quando entro na sala, sou recebido com um belo e generoso sorriso nordestinamente brejeiro de Numa Ciro, e distribuo fanzines do coletivo Pó de Poesia do qual participo. Depois de um cafezinho e alguns biscoitos, a sala, repleta de pessoas de todas as partes do Rio de Janeiro, recebe as primeiras palavras de Martha Alkimin, que nos convida a fazer uma viagem. Uma viagem ao mundo de Homero, da Ilíada, da Odisseia, de Troia, da mitologia grega.
Em pouco tempo nos vimos imbuídos das impressões de palestrante sobre a musa da memória Mnemósine. De sua importância, não só na cultura helênica como em nossas próprias vidas. Na forma envolvente como ela é exposta nas obras de Homero.
A diversidade esteve presente no debate. Um quebradeiro nos trouxe Penteu e sua ligação com a atual política nacional. Lembro que em As bacantes, Penteu é destruído por Dionísio. Então liguei Dionísio à periferia que traz o novo. A mitologia africana aos poucos foi tomando o centro da conversa, depois que outro quebradeiro falou da analogia entre Dionísio e Exu. Muitos quebradeiros que tinham dificuldade em entender a mitologia grega se expressaram e falaram de suas identificações com a cultura afro e suas insatisfações em conseguir fontes mais profundas sobre ela.
Depois do lanche eu e os amigos quebradeiros Heraldo HB e Janaína Tavares andamos pela avenida Rio Branco discutindo a crônica da morte de Mineirinho de Clarice Lispector. Alguns instantes depois estávamos falando sobre a necessidade de várias linguagens e grupos culturais; tudo isso regado a muita cerveja na Senador Dantas. Um grupo cultural não sobrevive sozinho; senão se alimentando de outros grupos culturais. Viver culturalmente, além de produzir, é trocar. Quem sabe não criamos uma mitologia gregafricana?!
Poema sem título
por Vitor Nascimento
a mulata matuta
moleja, batuca
ritmos ancestrais
move moda griot
rugido da cor
de seus orixás
mexido marfim
acende o pixaim
num black erigido
compasso marcado
no fino rebolado
do espírito tingido
Meu nome é Rute Casoy e sou contadora de histórias muito interessada em Mitologia Indígena
Vou mandar aqui pensamentos que vieram ao meu espírito durante a brilhante aula da professora Martha Alkimin, não menos brilhantemente arrematada pelos quebradeiros.
Chegando em casa fui correndo reler meu amigo, o indígena, escritor premiadíssimo e doutor, Daniel Munduruku, em seu artigo sobre a literatura indígena.
Se a escrita protege do esquecimento.
Fui pensar.
Lembrei do Sotigui Kouayté, meu amigo, griot de casta, ícone da oralidade africana, de Burkina Faso, ator e muito mais que um mestre, um ser fascinante e carismático. Presença Forte cunhada na sabedoria da oralidade.
Lembrei do Sotigui contando que na sua aldeia logo na chegada havia uma estátua para o viajante, que o viajante lá era a pessoa mais importante.
Que quando chegava era recebido com alimento e depois do descanso, às vezes de alguns dias, começava seu relato tão ansiosamente esperado por todos.
E o relato era longo!
Entendo que estas pessoas enraizadas nos seus contextos sintam fome de histórias.
Do refresco das palavras voadoras.
Padecemos sem raiz. Falta de contexto, de terra, da aldeia pra chamar de minha.
Walter Benjamin, no seu famoso texto o “Narrador” também fala dessas histórias que vinham de longe. Longe em distância, longe no tempo.
Este longe, esta distância, tinha poder regenerador.
Lembrei do A. Hambate Ba, A tradição viva. Tem que ler.
O Daniel fala em ancestralidade, memória ancestral, saber ancestral.
O princípio, ativo revitalizador, cicatrizante, que aparece como remédio toda vez que a restauração é solicitada nos casos de ferimento, doença, conflito, rompimentos, sofrimentos, prejuízos em geral.
Por comparação, o saber moderno de informação feito nos traz acontecimentos recentes pelo jornal, pela mídia, televisão internet, a informação veloz que acabou com os tempos/ lugares remotos. Acabou com o longe, o atemporal, o era uma vez.
Tempo sem tempo. Tempo suspenso. Que nos faz lembrar do princípio do qual as coisas são feitas e restitui nossas identidades.
Raiz. Ritual. Religare.
O budismo fala do passado remoto, do tempo sem começo nem fim, da origem sem origem como dimensões restauradoras.
O Kaká Werá outro índio militante, nosso amigo, nos ensina a cura pela dança, pelas ervas medicinais e pelas histórias.
Todo mundo numa certa medida sabe do poder restaurador das narrativas. O longe impregnando o perto.
Os mitos, os contos de fada têm função terapêutica, alvo para nossas projeções. Nossos conflitos, nossas angústias, paralisias. Pelo mito somos alçados.
Catarse.
Na África, na Grécia, no Amazonas, em Israel, na Palestina, em qualquer lugar onde tem gente, a mitologia aparece com essa função de fazer sabedoria.
Fico pensando como seria interessante a vida antes do medo do esquecimento, uma vida permeável, desprotegida, com o canal francamente aberto para outras dimensões. Que as lembranças adormecidas acordassem, viessem sempre que chamadas. Sempre que solicitadas. Garantidas por tantos homeros hoje perdidos na multidão.
Uma vida em que todos igualmente tivessem acesso direto as suas eloqüencias. Que todos sempre lembrassem de si mesmos sem medo. Passado, futuro em convivência com as presenças e suas forças.
Como citou a nossa professora do inspirado doc de Werner Herzog, o arqueólogo que sugere o homo espiritual no lugar do homo sapiens.
Diria homo médium.
Aposto no saber mediúnico, no saber iniciático, no saber em transe, no nervo pulsante da memória ativa, de certa forma mutilada pela nossa cultura grafocêntrica com mania de salvar, de armazenar, de encher.
Não adianta, como dizia o nosso querido ministro da Cultura, mistério sempre há de pintar por aí.
Mulheres de Atenas
por Fabio Augusto
Dei uma parada pra estudar um pouco o que foi dito e me veio esse tema em mente.
“Mulheres de Atenas” faz referência a aspectos da sociedade ateniense do período clássico e a alguns episódios e personagens da mitologia grega. A letra faz alusão aos famosos poemas épicos Ilíada e Odisseia, ambos atribuídos a Homero. Penélope, mulher de Ulisses, herói do poema Odisseia, viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, período em que ela se porta com dignidade e absoluta fidelidade; mas, por um lado, sua formosura, e, por outro, os bens familiares atraem a cobiça de pretendentes, que julgavam seu marido morto.
Ela lhes dizia que só escolheria o futuro marido após tecer uma mortalha, que, a bem da verdade, não fazia questão de terminar: passava o dia tecendo e, à noite, às escondidas, desmanchava o trabalho realizado. E enquanto seu marido se mantinha ausente, embora por tanto tempo sem notícia, ela se vestia de longo, tecia demorados bordados, ajoelhava-se, pedia e implorava para a deusa Atena que providenciasse o retorno de seu amado. Já Helena era considerada a mulher mais bela do mundo. Sua história é uma das mais conhecidas na mitologia grega.
Esposa de Menelau, rei de Esparta, foi seduzida e raptada por Páris, filho do rei de Troia. Esse rapto deu origem à guerra de Troia, que os gregos promoveram para resgatar Helena; fato narrado em Ilíada de Homero. Embora Ulisses não figurasse no primeiro plano da Ilíada, nela é frequentemente mencionado, como um viajante conduzido a terras distantes e herói da batalha de Troia. Por essa escolha Homero, o poeta, relaciona as duas epopeias. A esposa de Ulisses, a prudente Penélope, opõe-se à esposa infiel — Helena, que na Ilíada é causa inicial da guerra. Por essas e outras razões a Odisseia está intimamente ligada à Ilíada.
Assim, como uma referência histórica de um momento da humanidade que data de 5 séculos antes de Cristo, os autores de “Mulheres de Atenas” (Chico Buarque e Augusto Boal) valem-se da ideologia de Odisseia para chamar a atenção das mulheres que ainda “vivem” e “secam” por seus maridos ao estilo ateniense”.
Retomando a análise, diremos ainda que a expressão “Mirem-se…” é ambígua. Ela parece indicar duas direções opostas para o comportamento da mulher: ela deve seguir o comportamento das mulheres atenienses/ela não deve seguir o comportamento delas. No Brasil de hoje, muitas mulheres têm o mesmo comportamento dessas mulheres, sobretudo entre as de baixa renda.
Numerosos sambas tratam dessa submissão da mulher e do comportamento machista dos homens brasileiros. As mulheres se enfeitam para seus maridos, mas apanham deles e assim mesmo pedem perdão (2a estrofe). São fiéis, enquanto o “malandro” sai de casa e se diverte com mulheres (6a estrofe). O homem quase sempre volta (6a estrofe) “aos pedaços”. Os autores, nessa estrofe, fazem um cruzamento entre Penélope e Helena. Helena foi a que traiu seu homem, Penélope ficou em casa. No entanto, aqui quem ficou foi Helena. Isso quer dizer que toda mulher, tanto Helenas quanto Penélopes são tratadas da mesma forma: “Elas não têm gosto ou vontade, nem defeito, nem qualidade”, diz a última estrofe. Não se valoriza a mulher, submete-se a mulher a humilhações, relegando-a a um papel secundário na sociedade.
Essa situação a cada dia se modifica com o crescimento do poder feminino, no melhor dos sentidos.
Aula interessantíssima
por Rogéria Reis
A aula foi interessantíssima. Classe lotada. Quase não encontrei lugar para me acomodar.
Como havia verificado a pré-aula, consegui participar e até arriscar uma fala. Nos dispomos em um grande círculo e o microfone rodou na mão dos quebradeiros, o que tornou o encontro bem dinâmico e rico. Aí quebrou geral.
As reflexões giraram em torno da aceitação da mitologia grega e da dificuldade de aceitação da mitologia africana.
Discutimos sobre a questão das narrativas gregas registradas, escritas e da oralidade das narrativas africanas.
Tudo isso para entender o percurso que a escrita percorreu desde Homero até a tecla do computador.
A necessidade de uma narrativa seja visual ou de uma literatura registrada nos detalhes e com detalhes observados do cotidiano foi pensada a partir do vídeo sugerido pela UQ, que demonstra pinturas rupestres em cavernas.
Foi quando compartilhei com os amigos a minha experiência com a literatura de Manoel de Barros, um escritor que me abriu um leque de possibilidades ao revelar que posso escrever sobre coisas simples do meu dia a dia.
Houve reflexões sobre a questão da mulher na escrita e as falas foram a respeito das dificuldades delas no registro das suas narrativas.
Um amigo questionou se havia homofobia na Grécia antiga, e fiquei pensando que desconheço relatos históricos que narrem conflitos nesse sentido entre os gregos.
Foram estabelecidas relações das figuras mitológicas gregas com as figuras mitológicas africanas.
Reflexões sobre a importância da construção de uma identidade também foi temática abordada.
Uma identidade que fosse além da grupal, local, alcançando algo mais amplo, como por exemplo uma nova identidade brasileira, afastando-se do estereótipo de que brasileiro vive sempre feliz e sorrindo.
Uma jovem nesse momento colocou que considera importante resgatar a cultura africana, mas que no momento não se identifica tanto com ela por ter nascido no Brasil e não na África, e pensa que uma cultura para existir não precisa aniquilar a outra, e que não se sente constrangida de conhecer uma cultura diversa da sua.
Com relação à aceitação da mitologia africana, fiquei pensando na questão da transmissão oral da cultura africana e estabeleci um paralelo com o imaginário popular construído sob a influência da igreja cristã e sob a égide do eurocentrismo, hegemônicos por longo tempo no percurso da nossa História.
Há muito trabalho pela frente no sentido de se desconstruir esse imaginário em busca de uma representação literária e visual que se aproxime mais do real da cultura e da religião de matriz africana.
As narrativas oral, escrita e a arte visual usadas como elementos úteis à transformação desse imaginário.
Um grifo meu seria que a arte popular produzida retrata os orixás de modo distorcido e distorcidas foram as narrativas orais e escritas que descrevem as figuras míticas das religiões de matriz africana, no Brasil. Foram acrescentados elementos que remetem ao mal, ao inferno (este último, um conceito introduzido por Dante Alighieri, cuja obra O Inferno de Dante, traz nítida influência da igreja cristã).
Esses elementos que expressam o imaginário popular e o reforçam não exerceriam influências na questão da “demonização” e da consequente “não aceitação” das religiões de matriz africana?
Não sou catedrática no assunto. São observações que faço do cotidiano e elucubrações minhas…
Ulisses e as quebradas
por José Orlando
Pelas quebradas saiu Ulisses a enfrentar tormentas, perigos, mistérios do vasto mundo e segredos do caminho. O viajante reconstrói-se com o itinerário, se refaz, se reanima, se reafirma como ser humano e segue adiante. Assim como Ulisses, nós fazemos a viagem geográfica, física e partimos para uma jornada interior que nem mesmo esperamos, mas o caminho de nosso próprio descobrimento sempre nos aguarda, fator esse que ilimitado em suas faces e nuances só se completa se almagamando com o Outro, com a proximidade, com o contato. Ulisses sai da periférica Ítaca, aporta na majestosa e sofisticada Troia, para voltar para os braços de Ítaca. Quebradeira, quebradas, quebrantos. Ulisses na epopeia é o ser à procura de sua origem, é o filho pródigo, o viajante à procura de si mesmo. Viagem feita de ida e volta, de retorno, de criação de nova linguagem, novo vestuário para as palavras. Com a poesia de Odisseia, Homero apreende a oralidade e a compactua com a história dos homens de carne e osso, e assim como em outras epopeias (Mahabharata, Ramayana, Beoulf, Lusíadas) percorre trajetos e territórios de intensa humanidade A estrada da cultura, da art , da educação, está no âmago da viagem, ousamos percorrê-la?
Um dia um mulato franzino que escrevia poesia e que morava nas Antilhas, precisamente em Santa Lucia (pequena ilha no mar das Caraíbas), cismou de escrever uma epopeia. E criou. O nome do livro é Omeros, seu nome é Derek Walcott, e o menino, danado, com seu feijão com arroz, ganhou o Prêmio Nobel em 1982! Epopeias sem fronteiras, do ofício à saideira, da oralidade à quebradeira, histórias em circum-navegação.
Que viagem hein, Homero!
por Luiz Fernando Pinto
Menina Quebrada
Narrada, inteira
De chinelo no pé
Mulher brasileira!
Menina do olhar faceiro
Da pele marcada
Cicatriz de Ulisses?
Caminhada da história
Africana ou Medeia?
Oral e escrita
Menina viagem perdida…
Solta os cabelos
Ouvindo histórias
Suspiro, esperança
Nessa arte das antigas parteiras.
Tradição oral, vivências
Por vezes torrencial
No ser representativo
És a mulher, no todo, um elemento cabalístico!
Essa vai para a menina Janaina, a juventude feminina nas Quebradas!