Do teatro à violência; da violência à poesia por Marcio Rufino
Nada como você já começar seu dia decidido a fazer algo; quando você planeja como vai ser seu dia. Levantei, tomei meu banho matinal. Fui a lanchonete do supermercado tomar meu café, que foi um suco de manga com um joelho de calabresa; e fui imediatamente pegar meu ônibus rumo ao Sesc de Nova Iguaçú, para assistir à peça teatral Urucuia: grande sertão do Coletivo Peneira dos parceiros quebradeiros Luís Fernando Pinto e Alex Siqueira. Chegando na porta do teatro, encontro a também parceira quebradeira Janaína Tavares acompanhada de sua irmã; e sou docemente recepcionado pela velha companheira de caminhadas e jornadas culturais Claudina Oliveira. Revoltado com a atual situação dos professores, sendo agredidos covardemente por policiais em manifestações, o palhaço Paçoca vociferava contra políticos de Nova Iguaçú, principalmente o prefeito, procurando incitar também a nossa revolta. Pasmem, o Encontrarte – festival de teatro que estávamos prestigiando é promovido pela prefeitura de Nova Iguaçú.
Quando entramos no teatro, esperamos tocar os tradicionais três toques da campainha e logo vimos desfiar no palco toda a cultura popular nordestina inspirada no universo de Câmara Cascudo, através da luta de um rei em casar sua filha princesa com um homem mais inteligente do que ela. A trupe de Luís Fernando e Alex representou com alegria e fidelidade o mundo da literatura de cordel. Terminado o espetáculo, fomos eu e Janaína cumprimentar o elenco. Janaína foi levar a irmã para casa, enquanto eu aguardei o Luís Fernando para a UQ. Lanchei com o elenco no camarim e na hora da saída um momento poético aconteceu. Quando fui apresentado à iluminadora Brisa e ela me disse seu nome, uma brisa morna bateu no rosto de todos. Momentos mágicos como esses parece coisa de cinema.
Já dentro do ônibus, conversando com Luís Fernando, eu via se desenhar diante dos meus olhos um novo caminho, um novo itinerário, uma nova geografia da Baixada Fluminense. Nunca tinha pego um ônibus pra Pavuna na Via Light. Era como se um novo cenário da região se alinhasse no meu imaginário, percorrendo toda a Via Light e passando por Anchieta.
Quando subíamos a rampa da estação do Metrô avistamos Janaína e fomos ao seu encontro. Já acomodados, enquanto Luís Fernando e Janaína namoravam eu e uma simpática senhora conversávamos.
– Não quero me aposentar não, meu filho, dizia ela, se eu ficar em casa fico gagá.
Falando da atual situação politico-social dissertava:
– Esses professores estão reclamando de barriga cheia. Já receberam reajuste de não sei quantos por cento e ainda estão reclamando. Nós do administrativo nem isso tivemos.
Como arte-educador que sou, preferi me calar para não ser grosseiro.
Chegando no MAR, a palestra de Sílvia Ramos já havia começado; e sua fala já reverberava em coisas que eu tenho consciência: o grande jogo de mão dupla entre a polícia e o tráfico, o Estado que fica por cima sempre tirando proveito disso tudo, e por fim, nós, a população, sempre omissa, impotente, fragilizada, vulnerável; sendo enganada, violentada, estuprada, roubada e assassinada tanto por traficantes, quanto por policiais. Logo depois do debate fomos ver os vídeos da artista plástica Berna Reale Vazio de Nós onde ela, critica e denuncia de forma bastante criativa e alegórica a opressão, a violência, o descaso e o abandono de órgãos públicos. Durante a exibição dos vídeos somado ao tema da aula, toda a hora o filósofo Michel Foulcaut vinha em minha mente. O jogo de poder entre polícia e outras entidades, muito além do tráfico e da população, e o estado de vulnerabilidade em que ambos se colocam se materializavam na fala de Silvia e na arte de Berna.
Depois do lanche a poeta e professora de Literatura Ivone Landim, minha parceira no Coletivo Pó de Poesia, foi ao meu encontro em frente ao MAR; e então ela, eu, meu grande amigo Heraldo HB, Janaína Tavares, Luis Fernando Pinto, entre outros amigos quebradeiros voamos pelos asfaltos e calçadas e sob os semáforos do Centro do Rio, como se estivéssemos aspirado o pó de pirlimpimpim, imortalizados por JM Barrie em Peter Pan e por Monteiro Lobato no Sítio do Picapau Amarelo, em meio às ameaças de manifestações, e fomos parar todos no Beco dos Barbeiros, em pleno Sarau Ameopoema.
No Beco, ciceronizados pelo poeta Conrado Gonçalves, a poesia emergiu e todos nós acompanhados de outros poetas vociferamos nossos poemas m cima do caixote exposto especialmente para a ocasião. Lá encontramos outro poeta da nossa Baixada, o querido Slow DaBF.
E assim foi o dia; marcado pelo teatro, pela teoria da violência e pela poesia.
Insuficientes 24 horas, por Juliana Barreto
Primeiro dia do mês de Outubro, esse mês importante de nosso calendário onde prestigiamos a Padroeira, as crianças e os professores.
Levantei cedo pra sair de casa a tempo de chegar nas Quebradas às 11. Com minha pré aula impressa em mãos, vinha lendo e vendo o mapa da violência no Brasil e na cidade do Rio de janeiro. Meninos do Rio, era onde eu me achava no texto quando pelo rádio o locutor começava a prever conflitos na Cinelândia, devido a ocupação dos professores. Por um momento, juro que meu cérebro tentou conectar o que eu ouvia e o que eu lia, como se o conteúdo do texto fosse um parente bem próximo do que eu ouvia no rádio, mas, não sei por que, o pensamento não foi adiante. Olhei no relógio, e vi que o tempo não favorecia uma reflexão.
Cheguei no MAR* a tempo de me concentrar naquilo que seria meu papel na cena que ensaiávamos. Heleny Guariba, amiga de Augusto Boal, quando ambos se encontravam presos no Dops no período da ditadura. Tive que tentar senti-la pra poder reproduzir sua voz, num contexto que me fere a alma no mais profundo, prisão, cárcere. Esse lugar que nos tira ao máximo de nossa identidade, nossa humanidade. (A quem nunca esteve em um presídio, recomendo uma visita, mas se permita a nunca mais ser o mesmo). Enquanto me dedicava ao texto no ensaio, mais uma vez meu cérebro tentou fazer outra conexão: A pré aula com o diagnóstico da violência, os meninos, os jovens do texto, o locutor anunciando um possível conflito, professores, e ali, Heleny Guariba, presa e morta. Senti minha alma se esticar como um elástico. Olhei o relógio, tínhamos que parar, a aula já ia começar. Guardei em algum lugar de mim as conexões que meu cérebro fazia, e que minhas emoções insistiam em resistir. Saí, comi alguma coisa que não me lembro o quê. – A aula começou (alguém disse).
Relatório quantitavo, detalhado e explícito de maneira singular por Silvia Ramos. Enquanto ela falava e mostrava minha realidade eu sentia como se o dia me cuspisse verdades de uma vida inteira. Não era só de homens, negros, pobres e policiais que sua pesquisa falava, era de mim. Aos poucos iam chegando na sala os retardatários, os atrasados, mas naquele primeiro de outubro, todos nós éramos retardatários, de alguma maneira, todos nós.
Vi entrar uma colega quebradeira muito tempo depois da aula já haver começado. Professora, ela vinha da Cinelândia. Mal sabíamos que estávamos a alguns minutos de uma das maiores vergonhas de nossa época.
Descemos pro Museu, onde a exposição Vazio de nós nos aguardava. Passei por uma curva escura e cheguei exatamente onde meu relógio, por vezes me tirou naquele dia. As imagens me levaram até as conexões que meu cérebro tecia em mim. E por ter permitido que meu relógio as comprimisse em alguma gaveta de minha alma, eu vi um pouco de mim em tudo ali. Sim, eu me vi na mulher pedaço de carne, eu me vi na senhora que recolhia ossos, eu me vi na senhora bem vestida com seu colar de pérolas, eu me vi naquele menino tirando fotos, eu me vi naqueles porcos, eu me vi naquelas celas, eu me vi com aquela tocha na mão, eu me vi sobre o cavalo vermelho. E me vejo ali, cada vez que acumulo em gavetas a vergonha de meu semelhante, que também é a minha. Me vejo ali cada vez que olho o relógio e descubro que no pouco tempo que tenho, só me resta viver de maneira “organizada”. Espremer as feridas compete com essa organização, compete com a “ordem”, compete com meu cotidiano de tarefas tão minhas.
Saio do MAR*, rumo ao sarau num beco cortado por uma sarjeta. Vozes imponentes narrando suas almas, e sobre nossas cabeças, os helicópteros. Nessas alturas já soubemos de tudo. Professores foram arrastados, humilhados, e mesmo ali tentando interagir com os poemas, nossos olhares refletiam nossa vergonha, havia uma tristeza, uma irritação no ar. Parecia ser o lugar, as cadeiras, o formato. Não, arrumamos as cadeiras, experimentamos uma cachaça mas nada nos permitia conforto.
Olhei no relógio, hora de ir pra casa. Depois de horas sem fim, consegui entrar em um ônibus. Na minha cabeça eu ainda ouvia a voz de Silvia Ramos, o locutor do rádio, Heleny Guariba. Ainda me vinham as imagens, os gráficos da morte, da violência, o homem de fucinheira, as mãos por fora das grades, e sentada na poltrona quando eu já ia me permitir um choro, uma senhora me chama e me diz:
– É filha, a vida é assim, nós que não temos nada com isso temos que pagar. Esse povo arruma confusão na rua e nós é que ficamos sem ônibus.
Eu fiquei muda, e percorri minha viagem de volta pra casa, pensando nessa mulher. Em quantas gavetas ela teve que manter fechadas. Quanto choro ela deve ter embargado e engolido, pra chegar naquela idade e estar tão distante de sua própria vida. Talvez seus motivos sejam parecidos com os meus, talvez não. Mas decidi ontem gerir meu tempo e minha vida de maneira que eu me permita ir além do que um dia me oferece. Deixar emergir o que está no meu profundo, as feridas e as chagas do meu próximo, tendo-as como tão minhas. Mesmo sabendo que sempre me restará pouco tempo e apesar das insuficientes 24 horas.
*MAR (Museu de arte do Rio)
Porrada da Mauá a Cinelândia, por Fabio Augusto Pedroza
Terça dia 1/10/2013
Confesso que outubro era esperado com carinho, pelo menos pra mim pois é um mês especial, mas esse ano, outubro não soube chegar…
Já me acostumei com a loucura do trânsito do centro do Rio e todos seus novos canteiros de obras, mas senti logo cedo que esse dia 1 seria diferente.
A população que a tempos anda indignada com o poder público, resolveu sair da perplexidade e se uniu aos professores e marchou contra os abusos e o golpe que o Executivo aliado aos seus vereadores biônicos impuseram aos professores e aos alunos da rede municipal.
Estavam todos ali no centro do Rio esperando um milagre, só isso mudaria aquele momento, até porque tudo já estava acertado, votos comprados, responsabilidades e ideais esquecidos, mas os mestres continuavam ali, verdade, aqui ainda se acredita em milagres.
Ligado nisso tudo e com a cabeça já em turbilhão, parti para o MAR, certo que o assunto a ser abordado continuaria me instigando. Lá conheci Silvia Ramos, mestre importantíssima no cenário acadêmico e especialista na questão da violência, segurança e ações policiais, a terça estava mesmo prometendo…
Foi uma aula interessante, importante, mesmo que em vários momentos eu não tenha concordado com algumas questões abordadas e tenha ficado incomodado com a exclusão natural que a baixada fluminense sofre todos os dias.
Nenhum dado, nenhuma opinião e nenhum resultado foi mostrado em aula sobre nossa região.
Nós, os sem UPP, sofremos com o descaso dos nossos representantes e ainda recebemos a bandidagem que foi despejada da zona sul e agora vivem ao nosso lado. Disso ninguém fala.
Aproveito até a oportunidade para sugerir a inclusão sumária da região da Baixada Fluminense na abordagem dos professores e palestrantes em sua explanações.
Temos uma bancada de quebradeiros baixadistas significante no curso e acho a questão da Baixada vital para todo o estado.
Após a primeira parte da aula, fomos rapidamente ao coração do MAR conhecer o mundo de Berna Reale, artista que através do seu projeto, Vazio de Nós, chocou, alertou, questionou e por muitas vezes indignou a alguns em sua apresentação.
Entendi a proposta da artista, mas naquele momento, aquilo tudo funcionou como pólvora na minha explosão de questionamentos. Estava tudo muito tenso.
Nem mesmo a arte, proporcionada pelo encontro de amigos no Sarau Amapoema, que aliás é clássico, com direito a poesia recitada em caixotes de madeira e tendo a sarjeta como arquibancada, nem mesmo os poetas e narradores que ali estavam, resolveram a tal inquietação do dia 1.
A essa altura, o governo já tinha oficializado mais uma traição ao povo.
O Rio parecia uma praça de guerra e vimos professores oprimidos, agredidos e com seus direitos e orgulhos roubados por exatamente quem deveria nos proteger disso tudo.
Nesse exato momento percebi que outubro realmente seria diferente.
Além de negro, naquela altura outubro estava vermelho também, fruto do sangue derramado na luta do bem contra o mal, na luta do lógico contra o insano.
Cheguei a conclusão que o meu dia terminava exatamente como começou:
Estranho, triste, cinza, caótico e claro, diferente.
O inverso das coisas do Estado, por Angelo Mello
A democracia tem como fonte liberdade e responsabilidade, está sendo desenvolvida a todo o momento por todos os cidadãos, ela é viva, tenaz, atenta, forte, solidaria e implacável, sem distinção ou gostos pessoais. Alguns dizem que foi uma conquista, outros falam de retrocesso, pois acreditam em autoritarismo, agressividade e força na condução de um Estado.
A palavra Estado em um dos seus sentido, quer dizer: modo de estar, situação ou condição. Que ironia pensar sobre estas palavras na situação em que o Estado brasileiro vive!
A política pública apregoada por grande parte dos nossos governantes revela um compromisso com a promiscuidade descarada e cruel aos quais décadas vêm sendo manipulada, sabotada e vilipendiada por interesses sádicos pessoais para se beneficiarem em trocas escusas de enriquecimento ilícito, basta ver as noticias comprometidas com um jornalismo sério e responsável para identificar quem são.
Já uma boa parte da mídia televisiva que não tem comprometimento com a verdade, sabota e camufla a realidade cruelmente quando não fala sobre estatísticas que mostram a cara, o gênero, a raça, a idade e a condição social dos mortos, assassinados agressivamente no País. Uma grande massa de negros, jovens até 25 anos e pobres que permeiam essa estatística. O perfil é bem característico e claro em sua realidade. Fontes estatísticas vinculadas ao governo falam que o Brasil está em um ranking mundial no 6º lugar que mais assassina jovens, denominado como “Mapa da Violência de 2011 – Os Jovens do Brasil”, equivale em média, mais de 50 mil mortos por ano, fora os desaparecidos e os que são enterrados em covas rasas que não entram nessa estatística.
Qual é o estado, ou seja, condição do Estado de suposto direito e igualdade para todos?
A consciência quando desenvolvida e estimulada por uma educação ético-socio-cultural, liberta, e o inverso da vida ética e solidaria não tem vez. A voz não pode ser calada o sentido de igualdade de direito garantido por lei, não pode servir de escaninho para leitura distante da vida cidadã. Tem que fazer valer, fazer viver e fazer sentir em todos os lugares, até mesmo quando o inverso das coisas do Estado vem com a repressão autoritária e cruel.
A institucionalização e por consequência a banalização da agressividade e autoritarismo ao qual estamos acostumados ver e sentir deve servir de exemplo de reflexão para cobrarmos uma resposta das autoridades desse país. A inversão de valores, falácias, imposições, mentiras, ironias, desmandos não tem mais como serem escondidos, pois o organismo público em todas as estâncias deixa a desejar há muito tempo e pessoas que mantém o Brasil, a base de sua força trabalhadora, morrem na fila do SUS e ficam atravancadas por burocracias gigantescas criadas para complicar e subjulgar a todo o momento quando é preciso utilizar as instituições públicas.
O Brasil quando sai para as ruas diz claro e bem alto que o sadismo autoritário tem que acabar e vai acabar, pois se não for assim, as ruas continuarão com educadores, mães, pais, alunos, advogados, médicos, engenheiros, garis, artistas, ou seja, gente que faz e constrói com dignidade o verdadeiro Estado laico de direito. Feito pelo o povo, reivindicado e exigido para que os governantes não tenham dúvidas, que a nação é construída por pessoas que entendem a dinâmica política e organizacional, que constitui uma nação soberana, que preze pelos cidadãos com respeito e muita dignidade para todos sem privilégios, com muito estudo e trabalho.
Tenho medo de pessoas sensíveis, por Vitor Alves
Tenho medo de pessoas sensíveis
Artistas de rua, poetas, meretrizes…
Pessoas verdadeiramente sentidas com as coisas da vida
Aquelas cujo coração facilmente inunda e transborda
Em lágrimas que carregam consigo sumo
Amargo de toda a penitência
Tenho medo de pessoas sensíveis
Pois que sentem tão à flor da pele, que a dor tamanha
Lhes obriga a virar o olhar em busca da paisagem bela
E refugiados na contemplação eterna
Querem mais que o resto se dane
Imagem: obra Palomo de Berna Reale.