Somos todos peregrinos, por Pablo Ramoz

Pablo Ramoz escreveu sobre a JMJ a convite da Casa Fluminense.

Nos últimos três anos, a Zona Oeste, especialmente o bairro de Santa Cruz, tem sido palco de especulações sociopolíticas instigantes, consequência da previsível projeção da região ao mundo com os grandes eventos, como a Jornada Mundial da Juventude. As políticas públicas anunciadas para o bairro nos últimos tempos estiveram ocupadas em corroborar com a imagética de uma Cidade Maravilhosa, servindo mais ao “mundo” de visitantes que circularam pela região nas últimas semanas, os quais podemos chamar de “peregrinos transitórios”, do que aos aproximadamente 300 mil moradores (IBGE/2010), os “peregrinos efetivos”. Foram muitas as intervenções urbanas na região, desde o tão esperado BRT, que anunciava a mobilidade digna e privilegiada, e que derrapou ao reproduzir cenas diárias de superlotação e obras mal-executadas, às incursões policiais nas favelas da região, numa tentativa de se instalar o que a imprensa chamou de “UPP temporária”.

Os jovens que optaram pela hospedagem em Santa Cruz sentiram na pele os sintomas de uma sociedade desigual. Os visitantes precisavam se locomover, por força de compromissos diários, para outras regiões da cidade, e muitos sofreram com a ausência e/ou o caos dos serviços de trens e ônibus. Ouvi, pessoalmente, desabafos que, embora muito educados, expressavam o descontentamento, a revolta e a surpresa com essa realidade desumana. O mais grave é que não se trata de um estado momentâneo, não é somente um problema da organização do evento, uma incapacidade logística para receber e adaptar milhares de pessoas num mesmo lugar. Isto é, sim, a triste realidade diária de grande parte da população de Santa Cruz e da Zona Oeste.

A notícia de que Santa Cruz, bairro instalado no que foi a maior fazenda jesuítica do Brasil, a Fazenda de Santa Cruz, receberia o Papa Francisco, de formação jesuítica, provocou nos moradores o fortalecimento do senso de pertencerem ao bairro, pela difusão da sua história e memória. O “Campus Fidei”, em Guaratiba, é um terreno estrategicamente localizado à margem do BRT, de modo que o acesso em peregrinação de todo o público do evento, advindo de qualquer bairro, precisaria percorrer as vias do corredor de ônibus da TransOeste. Isso nos levou a pensar que a escolha do local fora mais política do que logística. A falta de infraestrutura urbana, a dificuldade logística, a falha na gestão de riscos, a lama e, finalmente, a transferência dos eventos de Guaratiba para Copacabana, tudo isso reflete o descaso e a incompetência das autoridades envolvidas na organização do evento, sendo apenas mais um de tantos episódios negativos na histórica relação do poder público com as periferias e, nesse caso, em associação com a Igreja.

A JMJ deixou como legado mais uma oportunidade de reflexão política, em se tratando de periferias, ao estampar ao mundo que maquiagem sai com água. A Igreja e o prefeito do Rio acabaram de anunciar a intenção de transformar o “Campus Fidei”, uma área de manguezal, que inviabilizou a presença dos “peregrinos transitórios” pela quantidade de lama, num conjunto habitacional para “peregrinos efetivos”, o “Campo da Fé”. Expresso aqui a minha preocupação com os futuros moradores do “Campo da fé”. Talvez se espere que, como descreve a música Alagados, do Paralamas do Sucesso, as pessoas exerçam “a arte de viver da fé. Só não se sabe fé em quê”.

 

A Associação Casa Fluminense é um espaço de rede que reúne moradores e integrantes de organizações e movimentos sociais de toda a cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro. Trata-se de um novo ponto de encontro e ação coletiva para cariocas e fluminenses comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e integrada. Aberta a todos os que queiram participar, a Casa mobiliza e articula esforços de seus integrantes para a proposição e defesa de políticas voltadas à promoção de igualdade e ao aprofundamento democrático no Rio, alcançando por inteiro toda a nossa “cidade metropolitana” comum e as demais regiões do estado.

Pablo Ramoz é ator e produtor cultural, e quebradeiro da 3a edição