Socorro Brito
Ter Numa Ciro se apresentando na cidade deveria ser algo tão garantido quanto o canto gregoriano no Mosteiro de São Bento. O bom é ver repetidas vezes, religiosamente
Numa Ciro termina a temporada do espetáculo (mais precisamente um monólogo cantante) “A peleja da voz com a língua” nas próximas terça-feira e quarta-feira (gosto muito de nossos dias de semana serem todos “feiras”, forma bem mais maluca — na origem eclesiástica tudo era feriado — do que as homenagens para deuses romanos/vikings de outras línguas; por isso sempre uso seus nomes completos) no teatro do Centro Cultural Candido Mendes, em Ipanema. Por mim, poderia continuar eternamente. Ter Numa Ciro se apresentando na cidade deveria ser algo tão garantido quanto o canto gregoriano no Mosteiro de São Bento. O bom é ver repetidas vezes, religiosamente. Mas agora é quase tarde: quem perdeu só tem mais uma oportunidade. Até que a peleja de Numa Ciro encontre sua próxima morada.
Escrevi terça-feira e quarta-feira. Não seriam então duas oportunidades? Não: em cada feira (Numa Ciro vem de Campina Grande, cidade que tem — além do forródromo e da “tech city” — um dos melhores mercados de rua nordestinos; espero que ainda com aquela ala só de barbeiros) o repertório é diferente. Na terça-feira a peleja é chamada de “A viagem”; na quarta-feira encontramos “O amor”. Os dois monólogos — criação encomendada para homenagear os 50 anos do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (não se espante: Numa Ciro é mestre radical na circulação entre mundos diferentes) — deveriam ter dado num só. Mas o seu bordado (desde criança, Numa Ciro aprendeu a bordar com linhas — tão preciosas “quanto um Stradivarius” — da Ilha da Madeira), somando tudo o que ia entrando de Portugal/Brasil/África (e ainda a interferência de outras línguas, mesmo o grego antigo), foi ficando cada vez mais complexo/quilométrico, e finalmente precisou ser dividido em dois. Quem puder ver só um, vai ter boa introdução ao universo de Numa Ciro. Porém, o melhor mesmo, é assistir aos dois rounds dessa peleja.
Como disse, Numa Ciro cresceu na Serra da Borborema paraibana, aprendendo até a bordar para se tornar uma dona de casa perfeita. Casou bem cedo, ainda adolescente. Naquela época/cultura, era comum que mulher casada deixasse de estudar. Nos planos domésticos, apareceu um grande problema. Ela não engravidava. Disse para o marido: “só terei filho se entrar para a universidade”. Barganha feita, passou para Psicologia, engravidou, mas inventou outro tipo de perfeição existencial. Seu nome era Maria do Socorro, em devir para psicanalista lacaniana, e também Socorro Brito, atriz. Apresentou os espetáculos “Escombros eletrônicos — Um show de anormalidades” (com Selma Tuareg) e “Tangos e boleros punks” (com Diomedes), na Campina Grande do início dos anos 1980.
Chegando ao Rio, ficou logo amiga do pessoal da Poesia Pornô e da Geração 80 (precisamos de algum estudo detalhado daquele momento cultural da cidade; outro dia procurei e não encontrei nada na internet sobre o Cabaret Voltaire de Ipanema — será que foi sonho meu? — lembro-me vagamente de gente pelada, filmes udigrudis e shows new wave — era a resposta carioca aos televisores da Gang 90 no Lira Paulistana e para a cítara de Alberto Marsicano [que o panteão hindu o tenha em bom lugar] no Carbono 14). Quase imediatamente foi parar na Academia Brasileira de Letras cantando “Subayara Johnny”, nua (Hidelbrando de Castro pintou uma explosão de bomba atômica no seu corpo, transformando-o em ameaçadora natureza viva). Totalmente demais?
Nas décadas seguintes, Numa Ciro foi desenvolvendo (com a colaboração de parceiros/artistas como Tania Christal, inventora do nome Numa Ciro, ou Flaviola, cocriador do primeiro monólogo cantante, e sempre Hildebrando de Castro) um tipo de espetáculo muito particular, fundamentado no canto à capela. Tudo simples e delicado: um corpo e uma voz em cena, poucos bons adereços mais. Voz diferente daquela cujo estilo que faz sucesso no “The voice”. Voz que peleja com o canto e com as ideias.
Agora: uma voz que nos leva para uma viagem pela língua portuguesa (incluindo o crioulo de Cabo Verde), tentando descobrir o que ela pode, inventa, anuncia. Ao ouvir Numa Ciro cantar no minúsculo palco do Candido Mendes, ali tão próxima dos nossos corpos e de nossas vozes, lembrei as palavras do poeta português Eugênio de Andrade, revelando que nossa língua tem “este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar das abelhas, esta graça súbita e felina, esta modulação de vagas sucessivas e altas, este mel corrosivo da melancolia”. No seu monólogo cantante, Numa Ciro processa e expande essas características (misturando Luiz Gonzaga com Renato Russo, Marianne Faithfull com Sophia de M.B. Andressen etc.) como um sampler sertanejo de muitos mares além.
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