Uma viagem a cidade do Natal, por Luiz Fernando Pinto

Pré-Natal

 “Sou um homem que não desanimou de viver e acho a vida cheia de encantos.” Luís da Câmara Cascudo

 

Lembro me de quando recebi em mãos o livro “Contos Tradicionais do Brasil” de Luís da Câmara Cascudo, tinha acabado de completar o ensino fundamental, antiga oitava série. Não possuía o hábito da leitura, nesse período tudo era frágil e incerto. Para ser alguém na vida, por intermédio de Jéssica, minha prima, mamãe resolveu colocar me em um curso de preparação para o mundo do trabalho. Lá ia eu para Santa Tereza, teria aulas de inglês, redação, etiqueta, ética e como se comportar em um ambiente de trabalho. Logo na primeira semana o professor mandou que eu cortasse o cabelo, utilizou o argumento de que o presente corte não era adequado para um ambiente de trabalho. Passei dois anos criando estratégias para enrolar o professor e com isso não mudar o penteado.

Passado o período do curso, fui encaminhado para o programa Jovem Aprendiz. Recebia um salário mínimo para fazer um curso de eletromecânico automotivo no SENAI, com duração de dois anos. Fiz amizades e comecei a circular pelo Rio de Janeiro. Com o Eduardo Lima, ia para o baile do Rosário, em Saracuruna. Com o Gustavo Reis, curtia o paintball em Vila Kenedy. Nos finais de semana íamos todos nos banhar nas águas de Ipanema. Retomei um gosto de criança e voltei ao teatro. Mesmo com o desejo miúdo, comecei a ler, no início textos de Maria Clara Machado.

Após dois anos terminei o curso de eletromecânico automotivo sem saber trocar uma roda, calibrar um pneu, encontrar um fusível. Sem dúvida a mecânica não era o meu caminho. O curso de preparação para o mundo do trabalho, preparou me para o que viria adiante.

Dei atenção para o que me fazia bem, o teatro. Com o passar do tempo já estava lendo Martins Pena e Augusto Boal, gosto dos nacionais. Apresentei uma peça aqui outra acolá, tudo ainda muito amador. Para ganhar dinheiro trocava vale transporte na Av. Sul América em Bangu. Foi o momento em que eu pensava estar rico, tirava R$20,00 por dia. As aulas de etiqueta me deram uma forma de falar diferente dos meus concorrentes, chegou um momento que as senhorinhas só queriam trocar vales comigo. Mas aí surgiu o bendito do Rio Card e o vale transporte entrou em extinção.

Sem dinheiro, estudando à noite, tudo ia muito difícil. Sempre na virada de um ano para o outro a cia de teatro na qual fazia parte entrava num processo de instabilidade, ninguém sabia se voltaríamos a ativa. Em 2008, não voltamos. Sem dinheiro, estudando a noite e agora sem o teatro, única atividade que me dava prazer.

Em casa pensando no que fazer deparei com o livro de Câmara Cascudo, aquele que ganhei após terminar o ensino fundamental. Devorei o livro em uma semana, gosto dos nacionais. Contos Tradicionais do Brasil, são cerca de cem contos colhidos por Luís da Câmara Cascudo. Como o próprio descreveu, “são contos vivos, trazidos de geração em geração, na oralidade popular”. Um conto de adivinhação chamou me atenção, A Princesa Adivinhona. Na descrição diz Cascudo: “Era minha ama das grandes sabedoras de histórias e gostando de contar me confiou essa história”.

Aquela história ficou na minha cabeça por dias, até que tive a ideia de escrever um texto para teatro inspirado no conto A Princesa Adivinhona, mas não poderia fazer isso sozinho. Eridiana Rosa, amiga que estudava Direito na universidade foi a pessoa que me incentivou e topou o desafio de escrever a dramaturgia comigo. Deixo claro que nunca tínhamos escrito nada, somente redações escolares.

Naquele tempo, Eridiana residia em São João de Meriti e eu, em Senador Camará. Escrevíamos cada um nas suas casas, nos encontrávamos uma vez por semana para conversar sobre o que tinha sido escrito e planejar as cenas subsequentes. Cada um era encarregado de escrever uma cena. Com a estrutura do texto definida, passamos a nos falar todos os dias. Depois de cinco meses concluímos o texto “Urucuia Grande Sertão”.

Nesse tempo eu era coordenador de teatro no Centro Cultural A História Que Eu Conto, ganhamos um edital pela Casa da Moeda do Brasil e montamos com cerca de 25 crianças o espetáculo “Quem Matou o Leão?” de Maria Clara Machado. Passava mais tempo no Centro Cultural do que em casa, com isso as brigas em casa se tornaram frequentes.

Deixando de lado os problemas familiares, fui arrumar pessoas para colocarmos de pé o espetáculo “Urucuia Grande Sertão”. Deus colocou no meu caminho, meu grande amigo, Alex Teixeira. Nos conhecemos numa oficina de criação literária chamada APALPE, ministrado por Marcus Faustini. Apresentei para o Alex o texto que acabara de escrever e logo topou o desafio. Depois de seis meses estreamos o espetáculo na Escola Municipal Maestrina Chiquinha Gonzaga.

Depois da leitura do livro de Cascudo, fui pesquisar mais a história deste homem. Fui em sites, blogs, assisti vídeos, fui a vários sebos da cidade. Aniversário, Natal, o presente que pedia era um livro de Cascudo. Consegui um bom material, livros como: “Coisas que o povo diz”, “Dicionário do Folclore Brasileiro”, Literatura oral no Brasil” “Câmara Cascudo, Seleta” “Vaqueiros e Cantadores” e “O Prelúdio da cachaça”. Em dois meses já tinha lido tudo. Com meus familiares, meus amigos, na mesa de bar, com todos e em qualquer lugar só falava de Cascudo. Lembro me que cheguei a perguntar ao Padre da Paróquia São Francisco de Assis se conhecia Cascudo, para minha surpresa ele conhecia, era uma homem muito culto.

Em 2011, entrei para a Universidade das Quebradas, um curso de extensão da UFRJ que promove a troca de saberes e práticas de produção de conhecimento da periferia com a academia. Apresentei um seminário denominado “Território das Quebradas”, um momento onde cada um apresenta o que desenvolve no seu território. O tema era Literatura Oral, logo minha apresentação foi sobre Câmara Cascudo. Elaborei uns slides, apresentei um vídeo sobre a vida e obra de Câmara Cascudo e falei de como minha trajetória se entrelaçou com a dele. No final foi aberto para perguntas e percebi que ainda não estava preparado para falar de um grande intelectual como Luís da Câmara Cascudo. Perguntas sobre sua vida politica, o seu olhar perante o folclore, suas pesquisas, seu lado provinciano, algumas ficaram sem respostas.

“Urucuia Grande Sertão”, já tinha passado pelo Festival de Teatro do Rio de Janeiro onde foi premiado com os troféus de melhor espetáculo, melhor direção, melhor ator, melhor atriz coadjuvante e melhor iluminação. Fomos ao Fringe em Curitiba, ficamos em cartaz no SESC Casa da Gávea, Teatro Maria Clara Machado, apresentamos no circuito SESC, escolas municipais, etc. Estávamos propagando a cultura popular e Câmara Cascudo.

Por intermédio da Universidade das Quebradas, conheci o professor Aderaldo Luciano, pesquisador em Literatura de Cordel. Assisti suas aulas, palestras e construímos uma amizade que gerou a criação do cordel sobre o conto “A Princesa adivinhona”. Aderaldo é autor do livro “Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro”, leitura indispensável para quem gosta ou estuda literatura popular.

Todos os meus caminhos estavam indo de encontro a Câmara Cascudo. Com o advento do Facebook, conheci Daliana Cascudo, neta de Luís da Câmara Cascudo e diretora do Instituto Ludovicus. Instituto que visa a preservação e divulgação da obra de LCC. Conversamos sobre o espetáculo “Urucuia Grande Sertão” e a possível realização de um sonho, conhecer a cidade do Natal.

Em 2013, concluí o texto “O Provinciano Incurável” inspirado na vida e obra de Cascudo. O texto foi um dos selecionados para o projeto “Seleção Brasil em Cena” onde teve sua leitura dramatizada no Centro Cultural Banco do Brasil,  no Rio de Janeiro e em Brasília.

Daliana apresentou me Francisco Firmino Sales Neto, um grande pesquisador e admirador da obra de LCC. Sales Neto assistiu a leitura dramatizada do “O Provinciano Incurável”, mas por motivo de desencontro não nos conhecemos pessoalmente. Trocamos alguns e-mails e Sales Neto presenteou me com três livros de sua autoria “Luís Natal ou Câmara Cascudo: de ator a autor da cidade do Natal”, “Palavras que silenciam: Câmara Cascudo e o regionalismo-tradicionalista nordestino” e “Nordeste e nordestinidades, histórias, representações e religiosidades”.

Quanto mais lia sobre Câmara Cascudo mais pessoas que estudam sua obra eu passava a conhecer. Grupos de teatro, pesquisadores, artistas, grupos de dança folclórica, poetas, etc.

O próximo caminho a cidade do Natal…

Natal

“Não se assombre, em Natal eu sou o único pecador profissional. Os outros são amadores.” Luís da Câmara Cascudo

Juntei todas as minhas economias e comprei uma passagem para a cidade do Natal.

A única vez que passei a virada do ano longe da família foi quando cismei que queria ver os fogos de Copacabana. Uma experiência desastrosa. Pouco antes da meia-noite, me perdi de uma amiga que me acompanhava, fiquei desesperado a sua procura. O ano novo chegou, os fogos passaram e só lá pelas 01:00 é que fui encontra-la. Jurei que nunca mais iria passar o réveillon em Copacabana. Mas agora seria diferente. Vou conhecer a cidade do sol, a cidade de Câmara Cascudo.

Ludmila e eu ficamos no Bairro de Ponta Negra, um bairro turístico de Natal. A praia é muito movimentada. Pedimos duas cadeiras e um guarda-sol. O sol de lá castiga igual ao sol de Bangu. Não demorou muito para que os vendedores viessem até nós, comercializando diversas iguarias: Ginga com tapioca, ovo de codorna, água de coco, cuscuz salgado, caranguejo, milho verde, crepe nordestino, etc. Observamos vários vendedores de cd’s de música, como estratégia de venda eles utilizam um carro de som, cada um confecciona o seu, feito de madeira e contendo dois alto-falantes bem potentes, conhecido como “carrinho de cd”. Um sanfoneiro veio até nós e nos presenteou com diversas músicas típicas do nordeste. No almoço, peixe, pirão, arroz, salada e frutas, lá você come bem e barato.

À noite na praia de Ponta Negra o comércio é bem intenso, restaurantes, lojas de artesanato, bares, ambulantes. Resolvemos jantar num restaurante que dava vista para o Morro do Careca. Um repentista conhecido como Manoel do Côco fazia o povo dar umas boas rizadas.

No dia seguinte, 30 de dezembro, fomos visitar o Instituto Ludovicus e conhecer Daliana Cascudo. Uma data muito especial pois Câmara Cascudo se estivesse vivo completaria 115 anos. Saímos bem cedo de Ponta Negra, rumo à Ribeira. A feira de Ribeira é uma atração à parte, lá você encontra de tudo, a feira é divida por blocos, bloco das frutas, bloco das verduras, bloco dos legumes, etc. Para quem gosta de tomar uns goles da malvada, ao final da feira você encontra cerveja bem gelada pagando a bagatela de R$3,00. Demos uma passada no Rio Potengi, tão admirado por Cascudo. Almoçamos no Mercado do Peixe e fomos conhecer os casarões da antiga Ribeira, a igreja Matriz da Sagrada Família, Centro Náutico Potengy, o prédio A Samaritana (Patrimônio riquíssimo da história arquitetônica e cultural de Natal. O poder público precisa urgentemente restaurar o prédio pois está prestes a desabar) e o Teatro Alberto Maranhão.

O Instituto Ludovicus preparou uma linda programação para o aniversário do Cascudo. Lançamento do cordel “Câmara Cascudo, arquiteto da alma nacional” de autoria de Marciano Medeiros, apresentação do poeta popular Bob Motta e apresentação dos Caboclinhos de Ceará-Mirim/RN. Chegamos bem cedo ao instituto, fomos recebidos com sorrisos e gentilezas, o povo natalense é bem receptivo. Fiquei encantado com tudo que vi, tudo bem organizado, bem cuidado. Geralda, funcionária do Instituto nos apresentou a casa com brilho nos olhos, curioso, perguntei sobre cada peça, o piano onde Cascudo dedilhava as modinhas de Heckel Tavares, a imagem de São José de Botas, as assinaturas nas paredes dos amigos que vinham visita-lo, os objetos pessoais, o quarto, a biblioteca. Uma viagem ao mundo cascudiano.

Confesso que estava ansioso para a chegada desse grande dia. Após a apresentação de Geralda, conhecemos Daliana Cascudo, uma simpatia que só. Até então só tínhamos nos falado através das redes sociais. Logo mostrou me um mural com reportagens do espetáculo “Urucuia Grande Sertão” e “O Provinciano Incurável”. A felicidade era tanta que por minutos fiquei sem palavras. Após meu súbito silêncio fomos papear. Falamos de “Urucuia”, Coletivo Peneira, Cascudo, o Instituto, desejos, etc. Entre os meus gaguejos e palavras, Daliana presenteou me com o livro “O Colecionador de Crepúsculos” de sua mãe Ana Maria Cascudo Barreto e lindos mimos do Instituto. Após a programação fomos embora pelas ruas da Cidade Alta, eu, embasbacado, Ludmila, cansada de tanto caminhar. Ainda convenci a dar uma passadinha do Memorial Câmara Cascudo e tirar uma foto junto à estatua do mestre.

No dia seguinte, uma passada em Pirangi para conhecer o maior cajueiro do mundo. Uma passada no Forte dos Reis Magos, que estava fechado, uma pena. Um breve passeio a praia dos artistas, praia do meio, praia do forte e praia de areia preta. Antes de irmos embora, uma gelada para assimilar tudo que passamos nesses dias. Entre silêncios, palavras e uns goles de cerveja, chega a nossa mesa Nazareno. Um vendedor de cd’s que não utilizava a estratégia do “carrinho de cd”. Veio nos alertar sobre os “delibriadores”, pessoas que conseguem o seu dinheiro através do dom da retórica, os pedintes. Contou nos sobre toda a sua vida. E como adoramos ouvir histórias, convidamos Seu Nazareno para sentar se à mesa conosco. Morador do Alecrim, há sete anos vende cd’s em Natal, cd’s “selecionados” como diz o próprio, “ninguém em Natal possui os cd’s que eu tenho”, conta. No começo desejou vender seus produtos mas com o passar das histórias e da cerveja Seu Nazareno presentou nos com cinco cd’s, entre eles o de Dom e Ravel  e o melhor de Agnaldo Timóteo, tido por ele como um dos melhores cantores que o Brasil já teve.

Nos despedimos de Seu Nazareno e da cidade do Natal com um até breve! Sem dúvida voltaremos a cidade do Sol!

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Pós-Natal

      “Eu sou apenas uma célula, uma pequenina célula que procura ser útil na fidelidade da função.”  Luís da Câmara Cascudo

 

Retorno ao Rio de Janeiro para continuar com os projetos que foram plantados nos anos anteriores.

Que São Cascudo nos proteja!

Primeiro os preparativos: acenda o fumo, deixe a conversa tomar rumo. A rede esticada, presa em duas palmeiras. O céu noturno cheio de estrelas. Agora, a oração:

Ajude-me, meu São Cascudo
Que tem coisas nesse mundo
Que só existem nas memórias
Do povo mágico das histórias.
Quero uma lição de geografia
Que um índio velho contaria
Para uma criança portuguesa
Se fartando com a sobremesa
De pé de moleque e brigadeiro
Junto com um peão de boiadeiro.
São Cascudo, me diga o que é
Que vem de noite num só pé,
E como me livro dessa assombração.
Meu Santo Padroeiro da Tradição.
Agora vou me deitar na rede,
Pois eu sei que o Santo entende,
Que amanhã é dia de festança
Vai ter música, aguardente e dança
Pro meu coração enamorado.
Valei-me meu São Cascudo!…”

 

Talvez seja de interesse:

Página do Coletivo Peneira.
https://www.facebook.com/ColetivoPeneira?fref=ts
Página do Instituto Lodovicus

https://www.facebook.com/instcascudo?fref=ts
Meu blog.

http://www.pintocultura.blogspot.com.br/

 

 

 Luiz Fernando Pinto é quebradeiro da 2a edição da UQ