UQ entrevista Renata Codagan

Guerreira de vida, sonhadora de alma. A quebradeira Renata Codagan conta um pouco de sua trajetória como arte-educadora. Educação, política, drogas, juventude, ela trança todos esses assuntos como a obra de arte que fez na Escola Livre da Palavra. Cabelos? Sim. Arte? Também! Tudo junto e bem misturado como é de costume nas Quebradas da vida.

Como é seu trabalho como arte-educadora? Por que resolveu trabalhar com isso?

Na verdade, no início, não resolvi trabalhar com isso… Sempre gostei de estar conectada à arte, desde pequena fui incentivada a isso. Fiz alguns cursos ligados à dança e ao teatro. Acho que eu queria era ser artista. Com 22 anos, ingressei na UFRJ, na faculdade de Letras, e logo nas primeiras semanas assisti a uma apresentação de um grupo de universitários negros, que amei. Na mesma hora cheguei perto do diretor e disse que queria fazer parte, eles eram um núcleo do CTO (Centro de Teatro do Oprimido).

No verão seguinte, a tia de um namorado meu me chamou para fazermos uma colônia de férias para as crianças do condomínio dela. Depois dessa experiência, nunca mais parei de fazer oficinas com crianças. Senti necessidade de aprender mais, e foi aí que ingressei num curso de formação de professores, o Aieduc, no Instituto de Artes Tear. E nunca mais saí dessa casa (risos). O Tear me mostrou alguns caminhos a seguir dentro da arte-educação, me deu chão, paredes, teto e nutrição continuada, pois até hoje integro alegremente essa equipe no desbravar da arte-educação nos espaços que atuo, não apenas como entretenimento ou algo para acalmar os alunos, mas como área do conhecimento e, portanto, ferramenta para o desenvolvimento integral do sujeito. Bem, a princípio não foi uma escolha clara esse caminho, mais tarde, porém, sim, ficou clara a escolha de atuar no social.

Como funcionava seu trabalho na Agência Redes para Juventude? E nas Redes de Desenvolvimento da Maré?

Na Agência, entrei como mediadora territorial, e na segunda versão, o Faustini me convidou para coordenar o Ciclo de Estímulos, que é o primeiro momento do jovem na Agência, no qual vamos estimulá-lo das mais diversas formas, para que cada jovem tenha a primeira ideia para desenvolver um projeto na sua comunidade. Minha atuação era contribuir na formulação da metodologia desenvolvida pelo próprio Faustini (a base da metodologia envolvia os conceitos da arte-educação e da cultura digital), fazer a formação do grupo de mediadores e de ativadores de redes, acompanhá-los na prática — os próprios jovens e os projetos que desenvolviam.

Na Maré, iniciei minha trajetória em 2002, no CEASM, como contadora de histórias. Nessa época, o Programa de Criança Petrobras na Maré, contava apenas com duas contadoras, eu e mais uma. Fiquei por mais ou menos três anos; saí por motivos de ordem pessoal, com profunda dor no coração, me sentindo em dívida com o trabalho, com as pessoas e com aquele lugar. Em 2009, fui convida pela Redes para retornar ao Programa de Criança da Maré e coordenar a equipe da Formação de Leitor. Na época, essa equipe ainda não tinha esse nome, chamávamos de equipe da Sala de Leitura. Com o desenvolvimento do trabalho e o amadurecimento, entendemos que Sala de Leitura é o nome do lugar em que atuávamos e não o que desenvolvíamos, e então mudamos não só o nome, mas também a visão sobre o nosso trabalho. Foi uma época de muitos desafios, mas muito feliz, e coincidentemente, nesse período, passei pelas Quebradas.

Bem, o trabalho dessa equipe se desenvolvia em 11 espaços de educação, em nove escolas do município, uma creche comunitária e na sede da Redes. Isso tudo espalhado por seis comunidades. A equipe era composta de contadores de história e de dinamizadores de Sala de Leitura. Construímos uma metodologia fincada nos princípios da arte-educação, da ludicidade e da cultura popular, carro-chefe da maioria dos contadores. Meu trabalho era formar, acompanhar o trabalho desenvolvido pela equipe nos locais de atuação, mediar a relação da equipe com a escola, com o professor regente de turma e da Sala de Leitura, além de produzir relatórios gigantes para dar conta dessa produção toda. Tínhamos também uma preocupação com o ambiente da Sala de Leitura, que era todo decorado para o acolhimento dos alunos, docentes e de nossos projetos mirabolantes. Além de tudo isso, me meti em outras tantas ações da Redes como fazer parte da equipe que organizava as reuniões gerais do Programa e da própria Redes, da equipe que preparou a festa os 10 anos do Programa Criança Petrobras na Maré, criei junto com uns loucos sonhadores o Kizoma da Maré, festa reflexiva sobre a condição de negras e negros na Maré, no Brasil e no mundo. Cuidei carinhosamente da inauguração e organização da Biblioteca Infantil Maria Clara Machado, espaço que muito solicitei aos gestores com pretensões de ser a célula mater de nossa equipe. Onde se ouvia a palavra festa, lá estava eu! (risos)

Qual o maior desafio de ser uma educadora?

Nossa, me ocorreram tantos pensamentos, poderia listá-los. No entanto, me dei conta que sou apenas uma educadora, não a presidente da República ou ministra da Educação… (risos). Mas diria que uns dos mais importantes desafios no nosso país seriam, principalmente, nos espaços públicos que atuei por diversas vezes, através das ONGs e nas próprias ONGs, salvo algumas exceções, a precariedade das condições dos desses espaços, das condições materiais… Até hoje não sei como conseguimos realizar nosso trabalho sem essas condições básicas. Na verdade, muitas vezes complementando com materiais pessoais, pois o desejo de ver os planejamentos se realizarem e oportunizarmos aqueles conteúdos aos educandos é tão grande que não medimos esforços, “tiramos do bolso” e pronto. Isso não é privilégio meu, muito educador faz isso, e sei que a querida Helô fez isso no início das Quebradas para nada nos faltar… e não faltou.

Quero ressaltar que, no caso das ONGs, a disputa tem sido tão aguerrida pelos financiamentos, que os projetos ficam extremamente enxutos para se garantir, permanecer na disputa. Muitas vezes pleiteamos, hoje em dia com o próprio município e/ou Estado, as verbas que vem do governo federal, que atualmente acredito ser um dos principais financiadores no Rio de Janeiro, e talvez no Brasil como um todo. E isso, lógico, vai refletir em algum lugar, muitas vezes nas condições materiais e nos salários dos profissionais que executam os projetos.

A outra questão, que é bem triste, é a desvalorização da classe no que se refere aos nossos salários. Para que possamos ter um salário razoável, precisamos trabalhar, no mínimo, em três lugares diferentes, e isso vai se refletir na nossa produtividade. Houve períodos em que cruzar a cidade fazia parte da minha rotina diária de trabalho. Hoje, isso só se modificou porque estou trabalhando menos.

Como optei por trabalhar em projetos sociais, a instabilidade financeira é uma companheira cada vez mais perversa. Os contratos estão tendo o tempo reduzido a cada ano e sem garantias de continuidade. O Terceiro Setor virou, grosso modo, uma feira, que quando o financiador precisa (para responder as suas responsabilidades sociais ou mesmo incluir sua imagem na mídia) vai lá e financia um “projetinho” e pronto. O profissional fica sem as seguridades tradicionais porque é autônomo. Bem, quando fiz essa escolha sabia disso, apesar de já ter tido carteira assinada num tempo nem tão distante assim.

Ficamos hoje sem outras possibilidades de nos organizarmos, uma vez que os salário são muito baixos e defasados do mercado. Há algum tempo venho tentando pagar uma previdência para garantir um futuro mais tranquilo, mas ainda não foi possível. Estou esperando o futuro chegar, pode ser que quando ele estiver aí, isso seja possível… (risos). A grande contradição é que muitas vezes estamos dentro dos espaços públicos, viabilizado a realização de um processo educativo criador, contemporâneo e possível, mas sem custar todos os encargos (somos profissionais baratos). Quero que fique claro que não reivindico ser funcionária pública, na verdade já espero pelo Quarto Setor, minha vocação é a inquietação e o questionamento. Enfim, já vislumbro outra forma de ser um trabalhador no mundo. Quero contribuir, formular e experimentar outras formas de relação entre trabalhadores e trabalho realmente revistas.

Quais as expectativas em relação ao seu trabalho?

Minha paixão é tão grande por esse trabalho, que hoje me encontro buscando uma forma de não desistir, tenho trocado ideias com alguns consultores de diversas áreas e com alguns colegas de jornada, e percebi que posso estar no mundo do trabalho de outra forma, oferecendo meu trabalho e minhas experiências de uma maneira mais proativa. Desde então, estou grávida de ideias e novos ideais. Ainda não sei qual é a cara do filho, mais sei que vai ser bonito… (risos).

Como foi a exposição que fez na Escola Livre da Palavra? Por que uma obra sobre cabelo?

Essa exposição, na verdade, foi um problema estético que o Faustini me criou… (risos). Ele chegou um dia dizendo:

– Amanhã você vai dar uma entrevista sobre sua exposição.
– Exposição?! Mas o que é isso? De que você está falando?!
– Qual o seu tema? – perguntou ele.

– Não sei! – respondi.

– Seu tema é ser negra, fala sobre “cabelo” – disse ele.

Nesse dia saí da Agência com esse problemão estético na cabeça, e posso dizer… na alma também, um pouco tensa, mas pensante. O mestre Faustini cria os problemas, mas é extremamente generoso e lhe oferece ferramentas, socializa suas referências, coloca toda a sua rede social à disposição. E dessa vez meu anjo da guarda foi a queridíssima mestra Beá Meira, que me auxiliou no projeto e na execução. Sou extremamente agradecida aos dois, pois me incentivaram e acreditaram tanto que eu podia, que passei a acreditar também. Foi um momento único em minha trajetória, pois me senti cuidada como busco cuidar nos projetos que atuo e na vida. Sempre acreditei que no social o acolhimento precisa ser pra fora e pra dentro.

Quanto ao tema “cabelo”, sugerido pelo Faustini, quando fui fazer a catação do que havia acontecido na minha vida em torno desse tema, vi que esse, realmente, era o meu tema. Rememorei várias situações que vivi por conta do meu cabelo. E que apesar de estar mais bem-resolvida do que tempos atrás com os meus cabelos, sei que no universo feminino ainda é uma questão. No Brasil, principalmente, as mulheres e meninas negras ainda passam por situações bem parecidas pelas quais passei e ainda passo. Sentia que produzir esteticamente sobre essa temática era intervir no mundo, e que através do “mapa do meu cabelo”, eu estava fazendo arte contemporânea. Pois é um tema vivo… tá acontecendo e podemos intervir poética e politicamente.

A exposição tem uma trança gigante, e tudo que está nessa trança já usei no meu cabelo. Várias fotos minhas de tempos e cabelos diferentes, e um aparelho de Mp3 com histórias que escrevi sobre o meu cabelo. Um fato curioso que ocorreu na exposição, no dia da inauguração, que nunca vou esquecer, foi quando umas mulheres estrangeiras, loiríssimas, ficaram um tempão olhado a trança e rindo e se identificando. Fiquei curiosa olhando sem entender nada e perguntei do que elas riam, e uma amiga delas, brasileira, me disse que elas tinham reconhecido o Neutrox — creme histórico usado pela mulherada, ótimo para usar na praia —, que também haviam usado, além de outro objeto familiar a elas: o pente de piolho. Naquele momento, entendi que aquele objeto que criei era arte, era uma atitude diante da vida.

Qual o melhor retorno do seu trabalho?

Sem dúvida a troca intensa dos saberes e sabores de todos os dias, poder socializar o que aprendi e aprendo o tempo todo, me nutrindo constantemente. Os alunos e as equipes que passaram e passam por mim e se tornaram multiplicadores das crenças e dos saberes compartilhados, companheiros das tantas lutas políticas e sociais que temos a desbravar nesse nosso país e nesse planeta. Sinto-me, como diríamos na militância, fazendo quadros políticos. Isso me deixa feliz, isso é educar para uma nova possibilidade de sociedade. Muitos passaram a compor o álbum de figurinhas da minha vida e moram no meu coração. A grana é pouca, mas a satisfação é muita! Como diz aquele famoso comercial capitalista que todos conhecem… “Isso não tem preço!” O Mastercad ainda não sabe disso… (risos).

Com você enxerga a juventude?

Potente e inventiva, mesmo quando as possibilidades são precárias e as oportunidades mínimas. Imaginem o que seria se a oportunidade à educação de qualidade fosse de fato um direito garantido para todos? “Tipo assim” (como dizem), imaginem se entrar na universidade pública, que é a melhor, não fosse uma saga, mas uma admissão automática após o término do Ensino Médio.

Na Redes da Maré há pesquisas que mostram a quantidade de vagas ociosas nas universidades — e são números absurdos, isso precisa acabar. Hoje ainda quem oferece mais oportunidades aos nossos jovens são: o tráfico de drogas, a prostituição e o nada. Imaginem se nas escolas primárias ensinássemos direitos, administração pública, política e empreendorismo? Viraríamos o planeta de ponta-cabeça! Eu topo criar a metodologia, quem me finacia? (risos). Porque somos um povo inventivo e espirituoso de nascença.
No entanto, enquanto não realizamos a democracia radical, vamos perdendo vários jovens, em sua maioria meninos e negros, mortos no tráfico, ou zumbizando entorpecidos de crack, dentre outras formas de se matar menino. Mas minha alma utópica não deixa de acreditar em melhores dias, por isso não desisto e trabalho. Como no livro de João Ubaldo Ribeiro, o Santo que não acreditava em Deus —, mas eu acredito em Deus e em deuses. Essa saga um dia terá final feliz!

Como a Universidade das Quebradas influenciou sua jornada profissional e pessoal?

Principalmente,pelas pessoas, pela “mistureba” que é as Quebradas. Cheguei lá pelas mãos carinhosas da Eliana, que me trouxe Helô, que me trouxe Numa, e lá tava a Rô, que me trouxe Faustini, que me trouxe Beá, e fomos juntos, eu, Leandro e tantos outros…
A Universidade das Quebradas me mostrou que podemos ter processos formativos na universidade mais dinâmicos, democráticos e contemporâneos, considerando os saberes das Quebradas e de pessoas como eu, que não construímos nossos saberes apenas na universidade.

Na minha vida profissional aumentou meu capital social e me trouxe um novo olhar sobre a universidade que até então era desgostoso e descrente, depois das experiências que vivi na própria UFRJ. No âmbito pessoal, a crença de que muita coisa que ainda vejo como sonho pode ser possível, pois vi acontecer nas Quebradas o conhecimento do doutor ser tão importante quanto o do quebradeiro. Essa valorização me deu força e gás para redimensionar meus projetos e me validar no mundo, porque passei pelas Quebradas.
Além da Helô, que é uma inspiração no seu desejo de socializar saberes, no seu olhar generoso acolhedor. Aquele olhar que diz relaxa, essa é a nossa família, as Quebradas é a sua casa.

A Universidade das Quebradas parabeniza a quebradeira por sua luta e deseja muito sucesso em sua jornada!

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por Mariana Mauro (bolsista Pibex – ECO/UFRJ)
27/3/2013

Foto da Renata:
Marta Azevedo – http://www.martaphotos.com/