Um relato de como uma linda trajetória encontrou as Quebradas pelo caminho.
“Aconteceu de forma interessante a minha entrada na Universidade das Quebradas. Recebi um e-mail falando sobre o curso, resolvi me inscrever e diante da ficha de inscrição já começou o meu aprendizado.
Sou um artista, é para artista, o que é um portfólio?
Fiz pesquisa no Google e comecei a juntar todos os meus trabalhos:
– Tenho poemas editados;
– Tenho dois CDS de composições próprias onde solo;
– Estou escrevendo um livro. Já tenho um editado e outro esperando financiamento;
– Canto em dois corais, um do Conservatório Brasileiro de Música – Polifonia Carioca com uma partitura na mão, um olhar analfabeto nas notas musicais e um ouvido bilíngue que canta em alemão um Réquiem de Mozart o outro descalça e cantando em Iorubá as cantigas do coral afro N’Kóórin Olóórun.
Me descubro artista apesar da timidez.
Na chegança participando do aconchego dos mestres acadêmico e dos mestres periféricos, escuto a palavra Quebradas se referendando à Favela, periferia e fico a questionar internamente:
Mas eu não sou quebrada, sou favelada, mas é assim que é conhecida a periferia em São Paulo.
Quebrada sou inteira. Inteira sou quebrada – Não sou!
Com o contato, com a dinâmica do curso e mais ainda com a troca descobri um sentido para a palavra que me desafiou o entendimento em sua chegança.
Cada parte é um sentido, um sentimento profundo que está no entendimento por um saber adquirido com aquele ouvido desenvolvido nos becos que os nossos pés favelados sujaram descalços na dor.
Se cada um é uma parte: parte da cultura, parte de uma partida transferida para uma nova história de vida, parte de lembranças, de saberes nos encontros dentro do próprio gueto e ou do aprendizado no lombo humano em uma vida parca, será que sou, somos quebradeiros?
Para se unir, juntar as partes e reconstruir esperanças é necessário utilizar a cola do valor, o valor é mensurado nas respostas e aplicação na vida, e este valor é potencialidade quando nos reconhecemos protagonistas do saber e desta forma nos imponderados de nossas histórias.
Então eu sou uma quebradeira, já fui quebrada, já quebrei muitos paradigmas e potencializei o juntar dos meus cacos. Assim como sinto no tremor das vozes dos meus amigos.
Reconhecer suas partes neste ajuntamento de histórias de vida é de fato participar de uma academia com pessoas fortalecidas culturalmente e com o dom de sobreviver com os cacos das políticas públicas.
Além de quebradeiros somos uma versão do Partenon com um tempo menor de durabilidade, em constante reconstrução além de sobrevivendo das grandes destruições e transferências, talvez sejamos um pouco bruxos, pois se vez por outra tocam fogo para acabar com a nossa essência, porém, fazendo histórias, graças ao sentido do respeito às individualidades.
Descobri que eu sou Valéria Barbosa na 3ª pessoa do singular, inexisto sem a minha comunidade ela sobrevive sem mim, então continuo quebradeira.
Fui cutucando cada vez a minha memória e entendi que a coragem foi potencializada neste período, o que me fez ir em busca de mais saber, entender sobre o ser, sobre o concreto, sobre as civilizações, ter noção de tempo e espaço, tendo como referencia a história. A cultura popular sendo revelada, as Quebradas é inteira, inteiramente aberta para os favelados.
Não importa se a universidade é dos Favelados ou das quebradas, todos nós somos quebradeiros, aplaudimos a tanto saberes do lado de lá e do lado de cá, estando em um círculo a olhar nos olhos o poder do saber.”
Foto: Mauricio Medeiros