Homo Faber, o animal que tem mãos – Por Rute Casoy

O significado poético das mãos e seus usos nos tempos modernos. O texto defende a necessidade de se desatrofiar o fazer manual para que uma vida plena possa se desdobrar e lembra que é possível ressignificar o uso das mãos para algo que tenha valor positivo, tanto na esfera dos afetos, quanto na esfera das expressões tão necessárias para a manutenção da saúde nos dias de hoje ameaçada pela massificação e mecanicismo.

Se trouxeres à tona o que está dentro de ti, o que é trazido à tona te salvará. Se não trouxeres à tona o que está dentro de ti, o que não trouxeres à tona te destruirá. (Evangelho de Tomé)

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A mão já vem embutida no nome do homem.

A mão traz a alma à tona

Além de saber, pensar, conhecer, acreditar, poetisar, sonhar e brincar, resta ao homem o fazer próprio das mãos tornando palpável seu infinito original.

A mão é extensão do coração/da alma. Ela molda dando forma às nossas intenções no mundo da realidade compartilhada.

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Mãos parte 1

Aqui o mundo é gerado pelo cafuné. O cafuné assim como o perfume e o sonho, atinge pelo corpo, não de súbito mas ao contrário muitíssimo lentamente, status de palpalidade por necessidade de salvação. É a lei do ciclo:

Vid/amor/te

Um mito de criação do mundo a partir do cafuné. Seria algo assim:

“ No início nada existia, tudo era apenas cafuné. Do cafuné surgiram as mãos e a cabeça recebedora . Nesta cabeça surgiu então o sonho.

Do sonho as coisas foram aparecendo, como enfeites, como tapeçaria, como bordado, como ourivesaria, na forma dada pelos artífices, que então ainda conotavam seus objetos de eternidade por total falta de pressa pelo qual eram feitos. Feitos à mão. No fundo o próprio tempo teria sido assim portanto tecido/inventado junto às respectivas narrativas por Ele (Tempo) geradas.

Nesta aldeia o tempo não passava, ele simplesmente os atravessava como um cosmético, um espelho no auge da sua mágica.

São as antigas moiras gregas, comandantes obscuras que surgem do cafuné matricional como mães/ tecelãs absolutas.

Temos nostalgia desta mão/mãe potente que traz no seu bojo possibilidades insuspeitas para nós, modernos, que perdemos a familiaridade com o código da vida, na acepção mais forte da palavra. Vida.

No cafuné principal / inicial, já citado como palavra chave deste texto , há vida assim transmitida, há vida capaz de gerar fractais, i.e. garantir o nascimento das singularidades necessárias à manutenção da espécie. Espécie que depende desta dança para sobreviver.

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No mundo contemporâneo referência é a memória, é raiz. A raiz é o indivisível que pulsa nas profundezas do ser e pede corpo/ expressão .

Memória é a matéria antes da matéria. Alimento primordial. A mão precisa fazer a colheita desta raiz todo dia, como tarefa básica e cotidiana.

Não perder a oração diária.

O mantra. O suco de luz.

Novos hábitos alimentares nos informam não sobre o que já morreu mas sobre a energia pura que sustenta verdadeiramente o corpo, o tempo, o espaço, o bem, o mal.

Portanto quando a luz extraída do suco/lembrança chega para nos curar do esquecimento , ela impede no mesmo ato o atrofiamento da mão , representante da alma.

Fora isso, muitas possibilidades serão perdidas. Grande é o perigo de ficarmos atolados nas partes.

Sofrendo simplesmente por falta de discernimento, de não saber separar o essencial do resto.

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As histórias são inventadas no útero, fábrica do tempo. São as histórias que mantém a fliliação de pé.

Ser capaz de assinatura, de autoria, de fazer os destinos/desenhos / desígnios com mãos próprias e, para isso usar muitas, diferentes ferramentas, pois um leque cada vez maior de ferramentas nos são oferecidas.

Como tecelões modernos nos perguntamos perplexos se daremos conta de sustentar o leque em mãos. Tal complexidade.Tal velocidade. E ainda corremos o risco de confundir a urdidura com a trama, perdendo o sentido da tecelagem.

Neste leque entra também o play station, os pigmentos e muito mais… Numa trama tão complexa, sòmente feita por tecelões atentos e que aceitam o desafio de extrair entrelaçamento da incoerência dos fios. Infinitos fios.

Um sentimento divino e maravilhoso surge neste momento/movimento como na música.

Não é nem preciso explicar.

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Nem o passado ancestral nem o futuro promissor devem aprisionar. Apenas um presente vivo, intenso, criativo, significativo.

Tecelões pós modernos escolhem o caminho do meio que se apresenta bem na frente se utilizando de tudo o que é possível.

A ordem é tracejar mapas com afinco, já que meios para isso já não faltam.

Mapas que levem à uma aldeia mais que real. Aldeia simbólica, emblema das relações, das mãos dadas.

É imensa a alegria que o encontro sempre proporciona.

O encontro é o fim.

E o começo.

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“Vou perdendo referências” manuscrito de Mana Bernardes com comentário de Rute Casoy

publicado originalmente no livro “Mão de Obra”, org. Fernando Pessoa e Ronaldo Barbosa.